domingo, 9 de setembro de 2012

Prêmio literário




E querem premiar a arte
 Como se pudéssemos
Colocar numa escala métrica
A métrica da poesia.

Querem eleger os melhores
E punir os piores
Como se na construção poética
Houvesse uma escala de Deuses e Semi-Deuses.

Querem destruir a arte entregando
Prêmios e qualificando com selos
Acadêmicos aquilo que não tem
Definição: a inspiração do poeta.

Querem glorificar a arte
Elegendo uma minoria sabichona
Da qual lhe falta
Entender o verdadeiro valor da poesia.

E de tanto escolher e de tanto saber
Vão esquecendo do poeta
Pobre e esfomeado que escreve versos
Para passar a fome.

sábado, 1 de setembro de 2012

Volta



Estava de volta à sua casa, olhava atentamente os móveis, já não estavam tão novos, mas continuavam limpos, sempre limpos, sempre sem um pingo de poeira.
A casa arrumada e velha mostrava que o tempo passava e que sua mãe não mudava. Encontrou naquelas paredes sua infância perdida. O cheiro de bolo passa agora pelas suas narinas, o cheiro de pão, o cheiro de salgadinho, o cheiro que sua mãe confeiteira carrega no suor e nas roupas: o cheiro de saudade invadiu-lhe o peito.
Andou pela casa tocando todos os móveis com a ponta dos dedos como se sentisse um pouco do passado, ou quisesse novamente deixar sua marca naqueles objetos de sua vida.
O seu quarto, que já não era seu, mas que estava intacto da forma que deixara estava arrumado, com livros nas estantes organizados por tamanho; a colcha e o tape formavam o cenário que jamais se apagará de sua memória.
Sentou na cama, olhou para tudo e teve uma vontade de chorar como fazia quando era criança, chorar de dengo, de saudade, chorar de morte, a morte de si próprio.
As lágrimas não queriam descer, suas lembranças começavam a invadir sua mente de forma quase a estuprá-la, ele resistindo, mas elas insistindo em entrar. Então seus olhos ficaram úmidos e por fim teve vergonha de si, vergonha de seu choro e vergonha de suas mãos que não são calejadas como a daquela mulher que lhe sustentara.
Desde o dia que partiu nunca mais voltara ali, sua mãe ficou sozinha e sua única forma de comunicação era por telefone em datas comemorativas importantes, eram divorciados de alma e pele.
Andou mais pela casa para sentir o gosto que já não provava fazia tempo, até que seu tio disse, Vamos, recolha seu terno, pois não podemos atrasar, Tudo bem, retrucou o homem ou o garoto? Não sabemos.
Recolheu seu terno, ajeitou a gravata e por fim sentiu que não era mais dali, sentiu que seu mundo não era essa e que essas lembranças foram besteiras sentimentais que acontecem uma vez na vida. Sentia que não era dali, mas sabia que algo seu ficou ali: por todos os lados sentia o cheiro de sua mãe, sentia o cheiro de bolo e sentia as marcas de suas mãos sujas de areia melando as paredes.
À caminho do hospital olhava silencioso a paisagem que o cercava e tinha vergonha de se dizer dali. Ia calado, sentado e encolhido no banco de trás como querendo esconder a cabeça. Olhava assustado e admirado com a paisagem que não mudara, que não crescera nem envelhecera. Parece que o relógio do tempo parou quando saiu daquela cidade tão infeliz. Sentiu mais uma vez que não era dali.
Entrou no quarto em que sua mãe estava internada, esta não o reconheceu, estava entre morta e viva, entre quase humana e uma deusa. Estava frágil, cabelos brancos, boca rasgada pelo sol e sem palavras para dizer.
Sentiu-se uma criança novamente, sentiu que precisava daquele colo, daquelas mãos em sua cabeça, daquele beijo, precisava sentir aquela pele quente lhe acariciar como a maior prova de amor que um ser humano dá a outro. Sentiu que era ele o fraco, mesmo sem estar doente.
Andou um pouco, se aproximou da mãe e meio reticente como sem saber o que fazer, sentou na beira da cama e ficou olhando-a com pena. O tio se afastou e deixou os dois a sós.
O filho não sabia o que dizer, não sabia por onde começar e não sabia onde terminara a última conversa que teve com ela. As conversas no telefone eram mero protocolo do qual já sabia de cor o que falar e o que perguntar, agora não sabia nada. Agora há sangue, há pele, há pessoas, há sentimentos. Não tinha uma palavra na boca, um gesto, um suspiro, nada! Não era filho dela.
Levantou, beijou a testa da velha mulher e tocou na sua mão. Há quanto tempo estes gestos foram feitos pela última vez? Ele não sabia responder.
Sentiu que aquela mão fria e macia o aprisiona, não deixa ele retirar a sua e não quer que ele vá. Teve pena de si.
Mas, mais uma vez ele foi feroz e não teve consideração, respeito e piedade: arrancou ferozmente a sua mão daquela cadeia e com um olhar de cólera desafiou sua mãe com um olhar superior. Ficou repetindo para si que ia embora,e por fim balbuciou, Vou embora. A mãe não respondeu, assim como não respondeu há 20 anos. Da outra vez ela segurou a porta e viu seu filho sumir da sua vista sem nem olhar para trás. Ela chorou por dentro. Ela morreu por fora.
Desta vez nada via, nada sentia, nada sofria.
Saiu da sala sem lágrimas nos olhos, sem arrependimento e com um sorriso amarelo no rosto, com uma sensação de dever cumprido. Sua função de filho foi executada, Agora só preciso voltar quando ela morrer. O tio dormia na cadeira sem preocupação. Deixou uma quantia de dinheiro no bolso da camisa do seu velho tio e foi embora sem olhar para trás.
Olhou o raio de sol que iluminava a calçada e seguiu seu caminho para fora do hospital: sua vida seguia, seu mundo girava, sua vida tinha um destino.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

O sonho de Clarice

O sonho de Clarice era ser como eu. Ser alta, forte e inteligente.
- Por que Clarice?
- Porque se eu for alta ninguém me chama mais de baixinha, se eu for forte todo mundo vai ter medo de mim e se eu for inteligente serei igualzinha a ti.
- Oh, que linda.

Clarice era esperta, muito esperta. Na flor dos seus sete anos era uma menina danada. Cheia de perguntas, cheia de preocupações, mas muito alegre e expansiva.
O problema é que Clarice não existe, Clarice é a figura de ideal dos sonhos de um pobre pai que perdeu sua filha.
Perdeu quando ela tinha sete anos, a mesma idade de Clarice, perdeu quando ela ainda sonhava em ser como o pai. Clarice virou uma fantasia, um conforto.
Ele senta na cama da filha já falecida e brinca com Clarice, conta histórias, pula na cama e depois ela dorme em seu colo enquanto assistem televisão, mas ele não consegue se afastar dela naquele sono. Acabada dormindo ali mesmo. Cabeça encostada na parede, sentado ao lado da cama. Sua mulher entra pé, ante pé e vai desligar a televisão que ficara ligada. Ela tem medo de acordá-lo, pois sabe a beleza desta situação. Mas olha para a cama e não ver ninguém, apenas os lençóis meio bagunçados. Ela não pode ver Clarice, jamais poderá. Não que Clarice não apareça para ela, aparece sim, mas ela não vê. No outro dia de manhã, Clarice o acorda para fazer o café da manhã, arrumar as coisas para que vá trabalhar. Mas ele só faz o café da manhã para que ela coma e depois leve-a para a escola. Da escola volta para casa, não quer ir trabalhar. Prefere ficar em casa, sentado no sofá, contando as horas para poder ir buscar Clarice na escola e poder brincar com ela novamente. Sua mulher não diz nada. Apenas beija-o na testa e se despede. Ela entende a beleza deste gesto. Clarice tenta estimulá-lo a ser forte, a voltar à vida normal e que esqueça dela, mas ele não quer. Ele prefere viver para ela a viver sua vida. Chega a hora de buscá-la, mas Clarice está chorando. Ele pergunta o que foi, ela não reponde; entra no carro de cabeça baixa. “O que foi princesa?” foi assim para casa, ele tentando arrancar dela alguma palavra, e ela só depositava lágrimas. Já em cima de casa ela fala: - Papai não pode mais me buscar na escola. Papai tem que trabalhar. Clarice era mesmo esperta, sabia que a doença de seu pai era por causa dela, mas ela sabia que isso não era bom, era mal. Papai sorrir e responde: - Nunca vou me largar de você. E passam o dia juntos, fazem a tarefinha, almoçam, assistem filmes, brincam, correm. Fazem tudo juntos. Mas ai chega um momento que ele não agüenta, para um pouco, olha para o nada e como se Clarice desaparecesse, ele deixa uma lágrima escorrer pela face, como se ele soubesse que Clarice preenchesse um vazio latente. Ele dá meia volta e vai ao quarto da filha, a filha que já não existe. Olha suas coisinhas, meche nas suas bonecas, e senta no chão. Clarice sem entender vai correndo ao quarto: -Papai por que você ta chorando? Pai bota Clarice no colo: - Nada não, deu saudade. - Saudade dói né papai? - É dói sim. Seria fácil, muito fácil dizer para alguém que deveria sair desta situação a vida continua, mas não é tão fácil. Sair desta situação é viver cada segundo desta situação. Não é fácil. Ele adormeceu junto novamente, ele acariciando a cabecinha de sua filha, ela esparramada no colo de seu pai. No outro dia, o pai levanta-se antes de Clarice, bota-a na cama com jeito para não despertá-la e vai preparar seu café, arrumar sua roupa, tomar um banho (coisa que já não fazia há tempo) e fazer a barba. Clarice não levanta, continua dormindo como num sono profundo, sono que só as grandes princesas das histórias poderiam dormir. Ele, no seu silêncio mortal toma seu café todo arrumado, lendo o jornal da manhã, e vê que o mundo não mudou muito. “Faz apenas três meses que não leio”. Ao terminar sua xícara ele vai até o quarto de sua filha, percebe que Clarice dorme sossegada, tranqüila. Ela não precisa mais de proteção. Na verdade é o contrário. Ele acende a luz para contemplá-la melhor, e dá um sorriso como só quem é pai pode dar ao ver o filho numa situação engraçada; ela acabara de jogar o travesseiro no chão. Ele vai buscá-lo e coloca-o em baixo da cabeça dela com cuidado para não acordá-la. Volta para a porta do quarto, olha para ela, apaga a luz: - Adeus Clarice, bons sonhos. E desce as escadas para voltar a trabalhar.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Para amar uma ruiva




Para amar uma ruiva é preciso cuidado,
Com seu cabelo de fogo elas soltam
Farpas para todo lado.

Para amar uma ruiva é preciso atenção
Com a cara de cínica elas levam
Teu coração.

Para amar uma ruiva é preciso ousadia
Elas odeiam viver
Na monotonia.

Para amar uma ruiva é preciso disposição
Fazem sexo sem culpa
Até a exaustão.

Para amar uma ruiva é preciso sinceridade
Com seu gênio de leão
Elas cobram a verdade.

Para amar uma ruiva é preciso ser liberal
Com sua alma leve elas vivem
Em pleno carnaval.

Para amar uma ruiva é preciso não ligar
Elas odeiam que cobrem o que elas
Não querem escutar.

Para amar uma ruiva é preciso entender
Que casamento, filhos e casa
É melhor não ter.

Para amar uma ruiva só basta amor
Elas não sonham com
Um marido doutor.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Aniversário


Estava feliz. Comemorar 17 anos, sendo mulher e virgem não era para qualquer uma. Selecionou a dedo o vestido que queria para esta festa, e quem a viu na semana anterior escolhendo esta que seria a roupa a sua roupa, não imaginava a felicidade por dentro, de uma criança adulta, uma felicidade de poder mostrar a todos a bela roupa que comprara.  
Sua festa foi algo planejado com bastante calma, queria que tudo desse certo neste dia. Acordou, escovou os dentes e às 4 horas da tarde já estava arrumada com o diadema de lacinho que deu àquela garota, quase mulher, um ar infantil. Gostava de contrastes. Sua mãe fizera o bolo e encomendara os docinhos e salgados, todos bem calculados para que não tivesse restos, eram tempos difíceis, mas nada que impedisse a filha de comemorar sua data. Continuava feliz ao longo do seu dia.
Ela ainda não sentia nas costas o peso da idade, mas que peso? Dezessete anos não pesam tanto assim, mas 50 sim, estes pesam. Também não sentia reflexo nenhum de envelhecer. Seu rosto continuava perfeito, seu ar continuava alegre, seu sorriso ainda era um sorriso infantil e cheio de esperanças. Gostava de sorrir, principalmente em fotos.
Convidou três amigos apenas para sua festa. A primeira era Luísa, amiga de infância que a acompanhou durante toda sua vida até o ano passado, quando concluíram o terceiro ano e Luísa passou e ela, infelizmente, não. Separaram, mas continuavam unidas pelo coração de amigas. Luísa não via mais tanto a amiga, o namoro e a faculdade consumiam boa parte de seu tempo, e visitar ou sair com a amiga era uma coisa rara, mas hoje, sim, hoje poderiam botar o papo em dia. A segunda amiga era Cristine, esta ela conheceu no cursinho de inglês que começou neste ano. Sentaram juntas na primeira aula e até hoje andam juntas no cursinho, sente feliz de ter encontrado alguém que pudesse substituir sua eterna amiga, isso faz ela se sentir menos sozinha. O terceiro amigo é na verdade um filho da amiga de sua mãe; ambas as famílias rezam para que desta amizade saia um namorico e quem sabe um casamento, sim um casamento entre os dois filhos da família seria o ideal.
Quanto mais as horas passavam mais apreensiva ela ficava, 18 horas, 19 horas e só agora o telefone toca. Olá Luísa, você está chegando? Não meu amor, infelizmente estou muito cheia com as coisas da faculdade, você entende né? Ontem eu saí com Jorge e quando vi tinha ficado muita coisa por fazer, vou ter de varar a noite. Tudo bem ai com você? Tudo sim, mamãe fez um bolo lindo, amanhã deixo um pedaço na tua portaria então. Oh, obrigada amiga, você é uma flor. E me diga, os convidados chegaram? Ainda não, mas vão chegar. Que bom, eu quero que seu dia seja perfeito hoje, ta? Fique tranqüila hoje você terá uma festa linda, cheia de gente na casa e terá presentes ótimos. É, eu espero que sim.
Quando a amiga desligou o telefone ela ainda ficou um tempo parada, como esperando alguma coisa que dissesse que aquilo era uma brincadeira, ou que fora engano. Mas não, foi verdade e sua amiga de infância, pela primeira vez, não virá à festa dela. Sentou no sofá, ligou a televisão e ficou esperando os outros convidados. Meia-hora de espera e o telefone toca mais uma vez, desta vez é sua amiga Cristine.
Olá minha linda. Meu bem, eu sinto muito mas não vou poder ir hoje, sabe? Minha tia faleceu, mamãe está indo agora ao hospital e não posso deixá-la sozinha. Nossa, sério? Sim, sim, aconteceu agora a pouco sua morte, já esperávamos essa notícia há alguns dias, mas ela veio logo hoje, infelizmente. Mas ei, não deixe se abater não, comemore seu dia, fique muito feliz, ganhou muitos presentes já? Espero que sim. Sua mãe ta ai? Sim está, ela fez um bolo lindo. Que bom, guarda uma fatia para mim, tudo bem? Tudo, eu levo terça para o cursinho. Ótimo amiga, obrigada. Fique tranqüila, eu vou faltar hoje, mas você nem vai dá por minha falta seu amigos vão me fazer passar despercebida, tchau, beijos.
Ficou pensando na dor da mãe, bichinha, agora ela está sozinha. Seu marido foi embora, sua única irmã faleceu e agora só lhe resta a filha. Pensando bem, ela não ficará tão só, ainda lhe resta a uma pessoa.
Resolveu retirar os sapatos cor-de-rosa e esperar pelo seu amigo sentada no chão vendo a televisão. O telefone tocou apenas dez minutos depois, seu amigo meio desconcertado deu um alô mais assustado que interessado em saber quem estava na linha. Oi, tudo bem? Ela respondeu com um tudo meio sem intimidade, meio que respondendo só por educação, já que embora soubesse o nome dele, pouco sabia dele e ele menos ainda dela. Não vou poder ir tá? Falou ele com palavras secas e sem intimidade, das quais ela respondeu com um tá desesperançado. Um longo silencio perdurou na linha e os dois desconhecidos resolveram desligar o telefone já que cada um não tinha o que falar para o outro.
Ao desligar o telefone ela olhou para a mesa e viu o bolo, os doces e os salgadinhos intactos. Seu vestido ela olhou e se sentiu uma boba por estar usando. Sentiu-se uma criança aprisionada dentro de uma burca, uma burca que usava porque queria, mas não tinha certeza se queria realmente. Abriu um botão do decote, ficou mais sensual, retirou as meias e atirou longe o diadema que lhe dava um ar infantil, agora sentia-se adulta. Uma mulher. Não tinha raiva, não tinha rancor, apenas tinha se libertado de coisas que lhe desagradavam de tal forma que agora ela poderia ser livre. A solidão pela qual passava jamais seremos capazes de descrever, já que ela se fechou e ao mesmo tempo se libertou.
Partiu uma fatia grossa de bolo, colou junto na bandeja dos salgadinhos, jogou os doces por cima e sentou-se no chão da varada olhando a casa toda arrumada com aquela mesa posta sem ninguém. Devorava os docinhos, comeu todos em três partes. Não saboreava a comida, mastigava muito, mas não saboreava. Depois comeu o bolo com a mão, deitou a bandeja no chão e foi jogando um por um os salgadinhos dentro de sua boca voraz. Engolia os doces para não engolir o mundo, e sentiu dentro de cada mastigada uma força da qual jamais pudera saber que tinha. Olhou para si e continuou a se achar boba. Terminou de comer, não levantou, ali ficou, olhou mais uma vez para seu corpo e teve vontade de se conhecer ali. Teve medo, mas um impulso a fez sentir seus seios, depois passou as mãos por todo o corpo e não teve mais medo, começou a descobrir a si mesma; dentro de sua profundeza dormia uma mulher da qual ela não conhecia e não sabia que habitava, mas sabia que tinha acordado.
Acordou e queria saber quem lhe tinha apurrinhando, já era tarde para voltar atrás e pedir desculpas por incomodar. Não tinha mais medo. Após dez minutos de caricias ela sentiu algo que jamais tivera sentido em toda sua vida. A ausência dos únicos amigos que tinha não lhe fez mal, pelo contrário, lhe fez um bem tremendo, ela finalmente pode saber quem havia dentro de si, e era um animal feroz. Gritou baixo. Ofegante, deitou-se no chão da varanda e olhou para o teto com um ar de fadiga e após a efusão de sentimentos tinha visto que já não era a mesma pessoa e isso lhe deixou triste. Bateu dentro do peito um coração diferente, sentiu sim, pela primeira vez, uma melancolia que a pôs em choque consigo. Não entendia nada da vida, nunca tinha sentido prazer, nunca tinha tido raiva, nuca tinha se sentido só, nunca tinha tido um ato de desequilíbrio emocional e agora se via vivendo tudo isso de uma só vez, numa avalanche de emoções como se cada segundo que estava vivendo agora valia pelos 17 anos de vida da qual já questionava se era realmente vida.
Decidiu olhar sua vida por outro ângulo, subiu na varanda, apoiou-se no ferro e olhou para baixo com a cabeça toda inclinada. Sentiu o vento no rosto, sentiu o frio da noite, parece que finalmente tinha descoberto o frio. Não teve medo. Encarou o chão com um olhar triunfal, já não tinha medo, já não tinha o que esconder. Seus olhos não mentiam, o chão era longe. Mas mesmo assim encarou, fixou seu olhar num único ponto e disse para si: venci.
Ficou quieta olhando para o chão, mas de repente lhe veio a idéia de se jogar da varanda. Que sensação deve ser essa? Não tinha medo, agora a vida para ela era viver cada segundo, não podia perder tempo. Que sensação será essa a de sentir o mundo passar por si e saber de algo que poucos sabem sentir? Chegou a levantar a perna como se fosse se jogar com os braços abertos. Mas botou o pé de volta no lugar, não teve medo, teve um pensamento: ainda não. Sabia que precisava viver cada segundo, mas viveu apenas alguns segundos de uma vida de dezessete anos, queria viver mais. Queria sentir a liberdade de ficar em pé na varanda, queria sentir a liberdade de se descobrir mais e mais, então resolveu descer.
Sentou no chão da sala olhando para a televisão desligada. Sua festa de dezessete anos foi a melhor que já tivera, a partir dela ela descobriu que somos sozinhos neste mundo. Desta festa, ela descobriu quem ela era, quem deveria ser e o que deveria fazer.
Sozinha, sentada na sala, olhando para o nada, a noite passou, e ela com um sorriso no rosto olhou para os lados e se sentiu cheia de gente, sentiu como nunca tinha sentido, sentiu que finalmente sabia viver. Ela, sozinha, sentada na sala com o bolo na mesa com apenas menos uma fatia de bolo, sozinha.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Tudo muda


De manhã cedo, na calma e pacata Metrópole Recife eu me vejo numa dúvida, atravessar metade da cidade de carro ou de ônibus? Com pouco dinheiro e com tempo de sobra decidi enfrentar o trânsito e o transporte público da forma como dantes fizera: lendo algum livro. O trajeto seria longo, mas não seria cansativo, ler dentro de coletivos era um hábito tão comum para mim desde os tempos do vestibular, que já era craque em não perder paradas, era só dá uma espiadinha no caminho.
Como fazia tempo que não subia em um ônibus para um trajeto tão longo, eu estava bem feliz, duvido tanta felicidade vindo de mim se tivesse que fazer isto todo dia. Sentei no coletivo e comecei a leitura de um livro que já devorava fazia dois dias. Enquanto ia me embriagando nas palavras e imaginando em que caminho o ônibus estava, eu negava olhar pela janela do ônibus a paisagem que tempos atrás me deslumbrara. Da primeira vez que andei pelo Recife, sozinho, e à noite, fiquei deslumbrado. Tenho ainda guardado na memória a impressão que tive: minha cidade é bonita à noite. Aquilo para mim foi como a descoberta de um acontecimento mágico e no auge dos meus 15 anos, do qual eu também descobria a vida, o amor e a felicidade, descobrir o Recife fez parte de um ciclo de evolução. Toda vez ao largar do colégio fazia questão de pegar o ônibus que iria fazer o retorno no centro só para poder olhar as pessoas que subiam, olhar a cidade viva, saber o itinerário e acompanhar aquela vida que me foi negada até então.
 Poderia optar por já pegar o ônibus do outro lado da rua, ele já voltando de sua longa jornada pelo centro, mas ai não teria encanto, seria apenas um transporte coletivo e não um condutor à outra realidade. Hoje, quem diria, eu recusava observar a cidade já tão defendida e apreciada. Talvez tenha cansado da beleza; assim como nos relacionamentos, chega um momento que a gente cansa e precisa de um tempo para retomar o amor, ou simplesmente chegar a conclusão que tudo aquilo já cansou.
Embriagado na leitura não vejo o tempo passar e esqueço de olhar onde estou, durmo. Durmo dentro de mim. Acordo subitamente de um sonho, por Deus, não era um sonho, era um pesadelo. Me recomponho e vejo que não dormia, era a realidade. Acordar é sempre bom, mesmo que de um pesadelo. Ali estava minha cidade transformada. Tomei um susto quando vi que a imagem que tinha daquela região com sua beleza e encanto já tradicional, era agora tomada por uma nova beleza e encanto: a modernidade. Meu coração saltou do peito e senti uma leve sensação de que tinha pego o ônibus errado e aquele era outro lugar. Mas era o mesmo.
Tantas vezes passei por ali este ano e não tinha dado por esta diferença, como pode? Passei de carro ali umas tantas vezes procurando meu caminho, atento ao trânsito e ouvindo boa música que acho que perdi de admirar ou assustar com a mudança. Talvez, se tivesse visto a mudança gradativa não tivesse assustado com a mudança total.
Desci atordoado e procurando entender o que via, parecia que acordava de um sono profundo do qual eu não podia acordar quando quisesse, mas apenas um susto desse poderia ser capaz de tornar a realidade. Tinha que resolver umas coisas muito longe dali e a parada neste foi uma decisão difícil, embora tomada em poucos segundos.
Olhei atentamente o que estava mudando e tentei resgatar na memória a imagem que tinha do lugar, realmente nada mais estava ali, nada. Tive a sensação de não ser mais de minha cidade, de minha terra. Tive a sensação de que não era mais de Recife, era de outro lugar do qual eu não sabia ainda. Sinto que a mudança é algo inevitável mas que ela não vai vim para mim, ela acontece à parte de meu desejo e de minha memória. Quando menos percebemos, bum, teremos de engolir a nova realidade. Talvez eu esteja acomodado com a sempre paisagem linda e poética retirada dos poemas de Bandeira ou da música de Lenine, é difícil engolir um abuso tão grande.
Não sei, mas acho que é assim também em tudo da vida. Quando nos acomodamos e simplesmente achamos que a vida está como estava antes, que não há uma fúria no outro ou na paisagem que nos rodeia, simplesmente ficamos para trás e é difícil acreditar que tudo esta mudando, menos a gente. Não sei se é uma mudança para melhor ou pior sei que é uma mudança da qual eu nem se quer cogitei em mim. É difícil para um casal quando um diz, “eu mudei e vi que a vida a teu lado é um martírio, você não muda”, palavras assim podem fazer você acordar de um estado de torpor do qual certamente não acordaria se a pessoa simplesmente fosse carinhosa e tentasse não assustar. Às vezes uma bofetada na cara ou na boca do estômago do comodismo é a melhor solução para perceber, enfim, o que acontece ao teu redor.
A vida moderna consome tanto, a vida é aquela que nos pede atenção e vitalidade, pede comprometimento e especialização, e quando achamos estar vivendo ela bem, percebemos que simplesmente estamos fechando os olhos para o que realmente importa: a gente.
 

sexta-feira, 1 de junho de 2012

O baú


Quando comecei a te contar minha história senti uma necessidade de me rever. Comecei a vasculhar meu baú, encontrar aquela menina que fui e hoje não sei se sou. Eu precisava também, saber se aquela que eu dizia era realmente aquela que eu era. Confesso que revirar tantas histórias, lembrar de coisas que eu não sabia se devia lembrar foi uma experiência mágica, coisa que psicanalista nenhum consegue revirando a mente de uma pessoa. Tantos fatos que há fora de nossa mente, fora de nossa vista. Tive o primeiro susto ao encontrar brincos dos quais não usava fazia tempo. Não lembrava porque os guardara, nem sabia quando tinha acontecido isso. Coloquei-os nas orelhas e voltei ao serviço, antes dei uma olhada no espelho e vi que estava bem com aquele par e senti o rejuvenescimento batendo na alma, rejuvenescimento com coisas antigas. Voltei ao serviço.
No baú estava jogado tudo que eu não usava mais. Não sei se eu não queria mais usar, se eu desgostava do uso, cansara, ou simplesmente queria esquecer aquelas coisas todas. Encontrei cartas, muitas cartas. Cartas de alguns ex-namorados e cartas que são, na verdade, bilhetes. Engraçado lê isso tanto tempo depois, parece um registro histórico mas não tem nada histórico, são coisas que a gente guarda para guardar de lembrança, mas uma lembrança que nunca vamos reler. O Pessoa tava certo, “todas as cartas de amor são ridículas, mas só as pessoas quem não escreveram cartas de amor é que são ridículas”. Hoje, ao lê-las, tudo parece tão simplório, aquele grande amor que ficou registrado não passa de linhas no pape e lendo sinto uma frieza nas palavras. Ridículo, mas necessário. Joguei novamente as cartas no fundo do baú, lá é o lugar delas, um dia mostrarei a alguém que já tive cartas de amor. Encontrei no meio ingressos de filmes imperdíveis, de shows e até um pedaço de cartão de crédito que foi do meu primeiro presente de adolescente.
Dentro do baú há também muitas blusas, shorts, e até um par de sapatos que usei no meu ensino médio. Minha nossa!, não sabia que havia guardado tanto coisa, cada uma com uma história da qual eu não lembrava, cada qual com sua carga de preciosidade.  Esta blusa usei nos meus 15 anos na hora da festa após aquele baile interminável e cansativo. Nossa, e ainda conserva o cheirinho. Encontrei fotos de minha família, alguns que já se foram... vovó, vovô, a foto do meu cachorro, sim meu cachorro que foi enterrado como se gente fosse. Nunca pensei que fosse tão bom revirar o baú de minha vida. A gente vai colocando aqui toda a nossa vida e esquece de observar, mensurar e excluir. Mas agora vejo que nada deve ser retirado, tudo faz parte de mim ainda, tudo ainda está vivo porque para mim tem um significado. Meus filhos se um dia forem revirar meu quarto após minha morte e encontrarem este baú, na certa, o tratarão como algo cheio de coisas velhas; para eles isso é algo morto como o dono. Mas não, aqui há história. Na certa eles olhariam as peças, não entenderiam o significado de umas e esvaziariam o baú e depois levariam ele a um brechó e com todas as outras coisas não saberiam o que fazer e, certamente, o lixo seria a solução.
Infelizmente é assim que fazem quando pessoas estranhas invadem nossas vidas, não conseguem entender o real significado de certas coisas estarem ali, simplesmente acham que nada faz sentido porque não são capazes de entender o que aquilo carrega. A morte do dono é também a morte de sua obra e de tudo o que juntou. A posteridade nunca entende o que é nosso só nosso e que não deixamos ninguém invadir.
Resolvi parar tudo. Eu não precisava mais daquilo, já tinha me redescoberto e já sabia quem eu era, eu sou eu. As coisas do baú são minhas, todas são minhas, todas tem a sua importância que eu entendo muito bem. Nada pode ser descartado, nem as cartas de amor.
Dotada de uma felicidade da qual fazia tempo que não sentia, ela guarda todos os seus documentos, todas as suas roupas, fecha o seu baú e joga dentro do armário. Lá está bem guardada minha memória, a salvo de invasores e a salvo de mim, eu não posso bagunçar aquilo, aquilo é meu, aquilo sou eu.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Nasce um eu lírico


Eram tempos da sétima série na qual os jovens deixavam aquela mania de serem os heróis dos filmes e desenhos e queriam ser heróis de verdade. Heróis do povo, seja como músico, ator ou até professor. Eram tempos em que a puberdade estava latente naqueles seres tão obtusos, que acreditavam saber mais do que sabiam; seus corações falavam de liberdade, de amor, de sexo e eles mesmos se reprimiam sem saber, de fato, o real significado da liberdade. As conversas se baseavam nas novidades que o mundo trazia: filhos da era da Internet, do celular, das músicas digitais, nós fomos cobaias de um mundo que queria se mostrar novo; nós as cobaias do novo século não sabíamos que o nosso gosto ia definir o gosto do futuro, muito menos sabíamos que o mundo estava mudando. Para nós não existia o ontem, o depois, existia o agora e o agora era como sempre fora.
De toda essa metafísica, de todos estes sentimentos, aquele que talvez fosse mais difícil de conviver era a sinceridade. A sinceridade para os adultos era algo complicado, devia ser mensurado para não ferir o outro. Para os jovens, a sinceridade era algo mensurado para não nos ferirmos ou perdermos o respeito dos colegas.
Nossa professora de redação era também nossa professora de gramática e nos acompanhou desde a 5º série, ou seja, talvez ela conhecesse mais todos nós que nossas mães. Pode acontecer, afinal, nossa sinceridade em casa é tolhida para se revelar na rua e vice-versa, quem sabe. A professora queria saber, apenas, a nossa sinceridade.
Uma senhora amável, sempre sorridente, acho que senhora traz uma sensação de que fosse velha, mas tinha no máximo uns 30 anos. A vida às vezes nos parece injusta com as palavras e sendo professora de redação ela bem sabia disso.  Com um sorriso no rosto ela entra em sala, coloca os fichários na mesa e diz que “hoje vocês vão fazer uma redação e me entregar ao fim da aula”. A turma toda, obviamente, contestou. Ninguém queria sofrer em tão pouco tempo, mas a mesma nos acalmou com sua autoridade de professora, “não adianta, eu quero para hoje e o tema será sobre o primeiro beijo”. A sala toda fez um silêncio como que se sentindo invadida em sua intimidade, sendo roubado pela primeira vez aquilo que não contávamos a ninguém ou para poucas pessoas, não sei explicar.
Eu ali estava calado, no meio da sala, calado fiquei. Não lembro o que se passava na cabeça, apenas queria fazer aquela redação. Nunca fui um gênio nas redações escolares porque o que eu queria escrever nunca era o que a redação permitia. Nem por isso eu era um mau aluno, pelo contrário, dentre os colegas da idade eu escrevia até bem. Após alguns cochichos e risos, a turma já se conformara com o tema e já fazia piadas do que iriam escrever. Eu silencioso estava, silencioso fiquei.
Não pensei muito e fui escrevendo sobre o tema, sobre a experiência que tinha, ou seja, nenhuma. Fui sincero com a professora, escrevi uma carta para ela com toda a liberdade que um texto dissertativo não permitia; acho que tal liberdade nunca mais uma prova de redação me daria. Em pouco tempo revelei naquelas linhas que nunca tinha beijado, que também não tinha pressa, que estava mais preocupado com os estudos do qual, quem sabe, o namoro poderia atrapalhar. Disse que a vida era muito mais que aquele sentimento e que estaria esperando o primeiro beijo com o coração aberto, e ele viria somente no dia que estivesse preparado. Simples. Escrevi e entreguei à professora aquela que para mim tinha sido uma redação comum, só que com mais liberdade. Lembro que não demorei muito escrevendo, apenas queria brincar no intervalo.
Surpresa tivemos na aula seguinte, “quando eu mandei vocês escreverem sobre o tema eu esperava a sinceridade, então o que eu li de vocês foi receitas de como treinar o beijo, confissões de quantos beijos deram, e até coisas das mais absurdas, como dos problemas que tiveram tentando beijar. Mas uma redação - nesse momento senti o coração gelar - uma redação foi sincera, linda, poética e inocente do jeito que ninguém foi. Já li na outra sala, na sala dos professores e vou lê aqui para vocês, o aluno mereceu um nove (a maior nota) pela sinceridade. Bem, se ele quiser eu revelo quem foi, e digo logo que foi desta sala – ela olhou para mim e viu meu rosto vermelho, estático, com uma cara pedindo que não revelasse - pois bem vou lê”.
Leu toda a redação e os alunos riram de alguns trechos, ela riu de outros, mas no fim estava admirada, sei lá, talvez sentisse uma sensação de esvaziar seu peito, dessas sensações que fazem valer à pena a escolha de nossa profissão.
Toda vergonha estava em mim naquele momento. Contudo, fiquei feliz por ela ter gostado e da nota que tinha tirado, mas estava profundamente confuso, sem saber nada do que aquilo significava. Alguns alunos descobriram que fui eu o autor, mas não conseguiram provar. Talvez perceberam a cara dela ao entregar a minha redação, talvez viram meu nome ao atravessar a sala com a redação nas mãos, não sei.
Não sei se ela tirou cópia da redação, ou se aquele incidente a acompanhou pelo resto de sua vida; no mesmo ano ela casou e foi morar em outro estado. Minha mãe leu a redação e fez uma cara de simpatia para comigo, que não sei definir bem até hoje o que significava. Talvez ela tenha visto ali a sua educação no filho, os pensamentos de que um dia o garoto vai agradecer por ter pensado assim, na sinceridade não sei.
Mas este fato, talvez a professora não tenha percebido, minha mãe também não e muito menos os alunos, colegas de sala, que aquela redação representava o nascimento de um escritor. Sim, ali havia uma semente de algo que viria a ser a única razão da existência desta pessoa: as palavras. No momento ninguém percebeu nada, inclusive eu, mas hoje olho para o passado e vejo que aquilo significou a maior liberdade poética que um escritor pode querer, muitos, talvez, até hoje não tenham conseguido ser sinceros consigo e ter escrito no papel o que realmente queriam dizer. Eu, com pouco mais de 12 anos, não sabia, mas tinha descoberto a essência do escrever. Escrever é um ato de libertação e de sinceridade.
Certa vez, li um texto de Jorge Amado no qual ele confessava que havia passado por algo parecido, só que no seu caso foi um padre muito intelectual que havia descoberto nele, um escritor e ajudou o garoto na construção de seu universo poético. Em vez de beijo, o tema foi sobre o mar, em vez de vergonha, Jorge Amado sentiu-se orgulhoso e foi respeitado pelos coleguinhas. Contudo, após a leitura do texto de Jorge Amado foi que me toquei do meu passado e daquele fato que estava já sepultado em minha memória, aquele foi o momento que descobri que eu também tinha tido um nascimento como escritor, um nascimento poético.
Já faz sentido o porquê de tantas coisas lançadas ao papel como um desabafo. A partir daquela redação foram se seguindo ao longo dos anos várias confissões, havia em cada uma a poesia, o lirismo da libertação, e hoje há um homem à procura daquela criança que não tinha medo, que apenas queria escrever para poder brincar no intervalo.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Descartando vinis

                             
Eu tinha um disco de vinil, joguei fora. Joguei também as caixas e toda aquela tralha. Não vou contar a minha história, para que contaria? Joguei-a fora. Peguei os sonhos, embrulhei numa caixa e descartei pela janela, talvez tenha sido mais fundo, talvez um precipício, ou atirei no mar. Junto com os sonhos foram às esperanças, os planos e algumas pessoas que eu julgava essenciais para mim num certo momento; sim descartamos pessoas.
Acredito que a vida é meio isso, o tempo passa e vamos nos desfazendo daquilo que não presta ou que dizem ser antiquado, desatualizado. Queremos sempre comprar o moderno, viver o moderno, ficar na moda e sermos “presentes” com o que o mundo dita de “presente”. Mas pensamos apenas em nós, pensamos na felicidade momentânea e não pensamos no que construímos. Talvez você jogue junto com a vitrola sua imensa coleção de vinis. Nenhum problema, você faz outra só de cd’s. Pode até ser a mesma coleção do artista, mas não será mais a mesma coleção: não terá a mesma poesia nem lirismo.
Pessoas são todas iguais fisicamente, emotivamente, e até em gostos.  Amigos também são iguais: pagam a conta, ligam nos momentos difíceis e aparecem em fotos. Mas nunca são as mesmas pessoas.
O tempo vai passando e vamos moldando o que tínhamos por sólido em algo mais tangível à realidade, mais aceitável, mais fácil, por quê?  Talvez a coleção de vinil não seja mais sua, já se perdeu no tempo. Talvez o seu eu, agora, seja colecionar cd’s. O grande problema é que nem sequer pensamos em nossos atos do presente, e talvez nem pensaremos no futuro, apenas fazemos. Jogar uma vitrola no lixo não é simplesmente jogar uma vitrola no lixo, é algo que nasce de um tempo que nem nós sabemos, não nasce com a gente. Alguém produziu o cd, alguém comercializou e pronto, nos vemos obrigados a mudar. Conhecemos novas pessoas, não sabemos de onde elas vieram e pronto, nos encantamos e queremos descartas as antigas. Velhas namoradas não inspiram o mesmo prazer que uma nova namorada, velhos amigos não inspiram o mesmo prazer que novos amigos.
Vivemos novas pessoas e somos “obrigados” a descartar as que não nos servem mais, somos “obrigados” a viver uma nova aparência com o medo de desagradar. E no jogo das aparências desagradamos a nós mesmos. Descartem vinis, descartem pessoas e sejam felizes até enjoarem da “felicidade”.