sexta-feira, 10 de julho de 2015

Meu amigo Caprichado.





Sempre tive dificuldades em aceitar a rupturas, a do Capri é uma das quais ainda não acredito que aconteceu. Quando vou na FDR ainda passo pelo corredor da cantina procurando ver se acho o Capri, era minha rotina quando estudava. De longe eu ouvia seu grito: “Na medida? É a lei”. Pronto, meu sorriso se abria, e o papo sobre qualquer coisa banal começava. Durante cinco anos frequentei aquela cantina não como consumidor, mas como confidente, amigo e até parceiro de alguns negócios como o teatro e o filme. Sei lá, eu gostava daquele sujeito enigmático pra caramba.
Embora tivesse convivido com ele tanto tempo, principalmente quando eu matava aula para ir na cantina conversar, muitas coisas eu não sei dele ou sei, mas eu prefiro deixar como um ar mitológico para outras pessoas. Lembro de várias conversas, lembro de várias piadas e dos conselhos que ele me dava sobre arte e a vida. Ah capri, deixasse-nos de forma tão abrupta e inesperada, deixasse um vazio naquela FDR já tão vazia, deixasse milhares de pessoas órfãs de um amigo, parceiro e acima de tudo, de um ser humano da melhor qualidade. Temos a certeza que será difícil conhecer um sujeito simples, porém gigante como você e que falta fará para aquele prédio. Todos os que saem da FDR após formados, quando voltam para visitar ficam com a  sensação que sempre iriam te encontrar ali atrás do balcão para conversar sobre qualquer coisa do passado ou da vida “daquela época”. E agora?
Agora eu carrego alguns arrependimentos: o de não ter ido na véspera, no dia 09 de julho na FDR fazer uma visita; de não ter conversado mais nas últimas vezes que vi e acima de tudo, de não ter tirado uma foto para guardar na memória. A morte te pegou de surpresa, amigo, e deixou-nos um vácuo no coração e na alma.


terça-feira, 7 de julho de 2015

Sobre entrar na FDR


Quando era estudante do ensino médio, estudei no colégio e curso especial. No primeiro ano do ensino médio eu fazia questão de pegar ônibus para fazer retorno no centro, pois a beleza do Recife para mim era algo novo e surreal. Eu, criado nas periferias de Olinda, que agora morava num bairro quase nobre do Recife, que mal conhecia a praça do Derby, ver a Cidade à noite era um sonho. Aquelas pontes, aqueles postes, aquela luz suave da noite iluminando os prédios históricos eram como um museu a céu aberto para mim. Sentia-me feliz quando largava cedo e podia fazer o retorno no centro.
Neste ano o palácio da Facvldade de Direito do Recife passava desapercebido por mim. Não que eu não notasse sua beleza, mas eu o via como uma realidade distante, como algo que só podia admirar de longe e jamais sonhar em conhecê-lo, muito menos estudar ali.
Estudar ali? Não, coisa distante demais. Lembro que certa vez num desses passeios dando retorno na cidade, um dos passageiros comentou, Olha só, essa faculdade tem mais carro que aluno.
Esta frase, escutada aleatoriamente e certamente dita aleatoriamente, ficou na minha cabeça por alguns anos como uma marca da distância de minha realidade.
Durante o terceiro ano do ensino médio, tive a ousadia de sonhar de um dia entrar ali. Ousadia sim, porque para mim, um garoto advindo dos subúrbios de Olinda entrar ali, seja para visitar, seja para apenas olhar, parecia distante, quase impossível. O palácio com sua beleza imponente impunha medo, respeito e desejo.
Comecei a passar por ali e dizer mentalmente “eu vou estudar ali”.
Pronto, o garoto suburbano de Olinda, agora morador de área quase nobre do Recife, estava tendo a ousadia de sonhar. E o sonho se realizou um pouco depois. Fruto de um cansaço mental e de uma dedicação que hoje sei que não foi apenas minha, foi de um conjunto de fatores.
No dia do resultado, lembro ter dito para,” finalmente vou entrar ali e saber o que tem atrás daquelas grades”.
Hoje, quase dois anos depois de formado, voltei para a faculdade para fazer mestrado, o prédio não é o mesmo, estudo no anexo, carinhosamente chamado de “casa de pombo”, mas só em estar perto daquele prédio que embora afaste muitos, e seja, em parte tolhedor de sonhos, tem um magnetismo sobre mim incrível.
Hoje o garoto que um dia sonhou em estudar ali, diz para si, um dia darei aula ali. Pode parecer pouco para muitos, pode parecer fácil para outros, mas para mim tem um sentimento diferente, soa como um sonho de um adolescente que cresceu distante daquela faculdade, e que não vive mais longe dela.


segunda-feira, 6 de julho de 2015

FUNCIONÁRIOS

 Todas as pessoas viraram funcionários públicos. Ninguém naquele imenso país de dimensões continentais fazia outra coisa a não ser servir ao governo, seja ele Estadual, Federal ou Municipal. E aqueles que não serviam ao poder Executivo, serviam ao Judiciário ou ao Legislativo. Houve um tempo que era um sonho entrar num desses cargos, onde pessoas dormiam pensando no dia que teriam tranquilidade pelo resto da vida. Agora não, até quem não quer é obrigado a assumir um cargo público. O que não poderia ser diferente neste país onde tudo é motivo de fetiche e sonho. O funcionalismo público, que deveria ser, pelo visto, algo de primeiro mundo, com diversos especialistas e pessoas dispostas a trabalhar, tornou-se mais burocrático e corrupto. Todo mundo sabia, todo mundo suspeitava, mas ninguém denunciava com medo que alguém lhe denunciasse. O país inteiro estava preso numa grande engrenagem estatal da qual jamais conseguiria sair. Primeiramente as pessoas entravam nos serviços Municipais. Seriam atendentes, copeiras, técnicas, analistas dos serviços municipais e etc. Seja ele ou ela de que canto do país for, teria de abarcar toda a população da cidade. Se o cidadão quiser, não precisaria fazer mais nada que teria esse emprego para toda a vida, seria servidor pelo Município, ganharia um salário e poderia morrer eternamente feliz recebendo uma quantia fixa ad eternum. As pessoas não se aposentavam, aposentadoria era prejuízo para o país. A engrenagem estava tão disposta que mesmo velho e decrépito, sem esperanças e forças a pessoa, mesmo não podendo ir ao trabalho contribuir, continuava a receber como se trabalhador fosse, e ficava em casa apertando botões fazendo para promover a propaganda do governo ao qual trabalhava, para que fomentasse a população, como se precisasse, a usar os produtos públicos.
Caso alguém quisesse sair do serviço Municipal para o Estadual ou Federal, ou para o Legislativo ou Judiciário não era tão complicado, mas teria que fazer uma prova. Prova de habilidades que envolviam conhecimentos diversos e tão inúteis para os cargos, que faziam questionar até mesmo a existência da humanidade. Por exemplo, caso alguém quisesse migrar para o Estado e ganhar 40% a mais, deveria se inscrever numa lista para ser sorteado. Assim, caso quisessem entrar no poder judiciário para ser Juiz, ou no Ministério Público para ser promotor, era por sorteio, neste caso anual, de pronto que qualquer um poderia ser o que quisesse caso tivesse a sorte num sorteio, que era transmitido ao vivo durante o último dia do ano. Fato tão esperado quando o natal, ou seu aniversário. Neste último caso, o acréscimo no salário era de quase 90%. A engrenagem era tão complexa e precisa, que não tinha como desmontar esta lógica pois se não teríamos desemprego. Foi o medo do desemprego num passado longínquo que fez os governantes tomarem decisões drásticas.
O país estava mergulhado numa crise profunda, pessoas estavam depressivas porque não conseguiam seus objetivos pessoais, quem queria ter um emprego nem sempre podia, porque a concorrência era grande para os concursos e para ingressar numa empresa, quem tinha uma empresa nem sempre conseguia se sustentar porque os tubarões internacionais derrubavam qualquer uma que surgisse em qualquer ramo que fosse. E a quantidade de gente infeliz e desempregada ia aumentando vertiginosamente. Os governantes não podiam fazer nada. Nada.
As cartas de suicídio chegavam aos montes nas mãos do Presidente, cartas que pediam emprego, cartas que diziam que estavam indo embora para o outro país; cartas que apenas cobravam uma solução e o Presidente atônito não sabia mais o que fazer. As filas dos cursinhos e os materiais voltados para concurso vendiam como nunca, todos queriam entrar no funcionalismo, mas até nisso era difícil de entrar. Até o momento que um sábio deputado resolveu empregar toda a população do país nos braços do estado.
Como, bradou um deputado atônito com a afirmação do amigo no alto da Tribuna, o que foi acompanhado em coro pelos outros setecentos e cinquenta deputados eleitos inutilmente para resolver os problemas do país e que agora, enfim, pareciam ter achado uma explicação para a sua existência tão laboriosa, Simples, respondeu ele, e explicou todo o seu plano que expliquei acima.
A população ficou feliz ao ouvir a notícia, os milhões de desempregados e subempregados sonhavam com o dia de terem um emprego decente e aquela solução parecia por fim a  qualquer angústia.  De pronto o deputado disse que no outro dia mesmo iria apresentar o pedido ao presidente e disse que ele mesmo seria voluntário a ingressar no serviço público de outra forma. De pronto foi a decisão, a partir de agora só havia aquela forma de ingressar no serviço público, começando pelo município, de tal sorte que, não existiam mais eleições para prefeitos, vereadores, deputados, senadores, presidente, governadores. Nada. Era proibida qualquer forma de disputa para ingressar no serviço público, quem quisesse ser presidente, governador, deputado, era só se inscrever numa lista que de ano em ano chamava o próximo da lista, de tal forma que a cada ano tínhamos um novo presidente e um novo governador e deputado e senador, de tal forma que qualquer um poderia ser, bastava se inscrever e aguardar a lista, não havia outro meio.
As pessoas ficaram felizes no início, a chance de vencer na vida por fim, parece ter atingido a todos coletivamente e que de agora por todas foi sepultada a tristeza. Mas foi só passar o tempo que a euforia foi embora e o marasmo tomou conta da população que trabalhava dez horas por dia para o governo. Tudo era igual no país, tudo era daquela forma e todos tinham um destino, o mesmo. Decerto acabamos com a miséria e o desemprego, decerto não há mais mendigos e putas nas ruas, não há jogadores de futebol sem emprego, não há apresentadores de TV mendigando audiência e não há bailarinas, atores, diretores, músicos e cientistas rezando para conseguir um trabalho. Todos estão empregados no Estado.
Todos são funcionários públicos de carreira. Não há infortúnios, todos são estáveis. Os apresentadores de TV trabalham para os programas de TV do Estado onde não é preciso fazer nada, apenas narrar os acontecimentos. Os jornalistas apenas mostram os acontecimentos do estado, onde investe, quem entrou, quem saiu de tal cargo e só. Como as pessoas não se viram mais sozinhas, não há mais uma só briga de vizinho, um assalto, um protesto nas ruas, nada.
 Os assaltos, este fato é curioso, foi extinto. Ninguém rouba nenhum pão, nem água e nem a caneta do colega, fato tão comum entre amigos do passado e conhecidos, perdeu totalmente a graça, todo mundo tem uma caneta e se perder o Estado dá outra que não tem mais para quê. Os estupros foram reduzidos a zero, os homens podiam contar com o serviço de prostitutas municipais, que recebiam um salário do governo para se deitarem com quem quisesse contratá-las e consumi-las. Era só ligar para o setor de prazeres mundanos do governo que era mandada uma prostituta aleatoriamente escolhida, e o contratante não precisaria pagar. As mulheres dispunham do mesmo serviço, embora no início tivesse protesto dos maridos, hoje eles aceitam, pois o casamento virou algo tedioso. Os maridos não sentem mais prazer no sexo com suas esposas e as mulheres também não sentem mais nada.
Neste país não existe namoro, noivado, nada destas etapas tediosas. Todos nascem casados e poderão viver juntos quando completem dezoito anos, já que desde o nascimento todos já tem um emprego público garantido. Não tem para que esperar juntar dinheiro para comprar uma casa, o programa de habitação do governo, que abarca construtoras e engenheiros do governo construiu uma casa para cada habitante e seus filhos, de ponto que há casas vazias nas ruas não porque alguém queira vender, ou não possa pagar, mas simplesmente porque o dono ainda não nasceu. As mulheres não precisam mais cozinhar, o governo dispõe de uma infinidade de cozinheiras que abarcam toda a população e fazem o mais variado prato. É só ligar e pedir que o governo deixa a comida na sua casa, você não precisa perder tempo tendo que ir para a cozinha, não precisa trabalhar nisso, não mesmo.
 Para a saúde o governo dispõe de belíssimos hospitais com médicos e enfermeiros capacitados que atendem a população de pronto, todos funcionários do governo, todos concursados e atendendo com aquele olhar rotineiro de quem sabe todas as doenças que assolam a população pois até as doenças parecem estatais.
Os músicos trabalham fazendo músicas para o governo, ou podem até fazer músicas próprias, mas o trabalho é distribuído gratuitamente para a população, já que o governo se encarrega de distribuir a música do artista para toda a população, de tempo que ele não precisa se preocupar em vender, ou não vender, antes de nascer a composição ela já está vendida. Os escritores e poetas são servidores públicos de carreira também. Contam histórias de amores públicos e sonhos estatizados. Suas almas são do governo e para eles é cômodo pois a população inteira tem acesso a seus livros e poesias, é distribuído gratuitamente em cada esquina e em cada lugar, fazendo com que a população não precise ir a livrarias, os livros estão nas ruas, nas calçadas, ao alcance das mãos.
Os professores são funcionários públicos, matemática e física são ensinados nas escolas e nos pontos de ônibus. Todos os alunos que se formam num curso de licenciatura já estão empregados, trabalham onde quer que tenha vaga. As crianças não reclamam da falta de professores pois eles existem aos montes e todos são formados em universidades do governo e dão aula em programas do governo. De modo que, se qualquer cidadão precisar fazer uma conta, ou quiser tirar uma dúvida há sempre um professor de prontidão no telefone ou na rua para resolver. Dicionários não existem mais, professores de Português são encontrados nos lugares mais inesperados, todos funcionários públicos.

Os produtos são todos feitos pelo Estado: desodorante, creme, perfumes, estojos, bolas, plásticos, mesas, computadores, celulares, relógios, óculos, bolas, telefones, grampeadores, clips, pilhas, bermudas, camisetas, sapatos, livros, tudo e todas as coisas são advindas das fábricas do Estado, que fornecem todos os produtos e serviços para a população, alguns são fornecidos gratuitamente, como os objetos de menor valor e outros são comprados a preço de custo, empregado milhares de trabalhadores.
De forma que comprar um carro é muito simples, o governo comprou todas as fábricas de automóveis do país e lá empregou seus funcionários que dia a dia colocam novos carros e ônibus nas ruas, onde todos podem adquirir quantos quiserem e onde quiserem, basta ligar e pedir o modelo que o governo leva na sua casa e desconta de seu salário.  As indústrias de viagens também são do governo, com aviões do governo com funcionários públicos capacitados e empregados. Os pilotos são funcionários de carreira que pilotam para todos os cantos do país com um trabalho proporcional a sua capacitação.
Os jogadores de futebol jogam para o governo, todos os times foram comprados e todos vestem uma só camisa. O teste para jogador é muito simples, após virar funcionário Municipal se inscreve no setor necessário, se for sorteado, vira jogador municipal, em jogos locais. Para ser um jogador Federal ou Estadual o procedimento é o descrito acima, onde as ligas e estruturas são maiores.

Este país de natureza singularíssima e virtudes preciosistas, funciona como uma grande engrenagem, onde o que sair faz o país perder os trilhos. Com todos empregados no funcionalismo público não há o que reclamar e protestar, tudo funciona e tudo está interligado. Não há mais medos e sonhos, tudo está ao dispor de todos, menos a morte, essa atua por sua conta, a morte cumpre seus deveres na hora que quer e quando quer, os cemitérios, todos públicos, parecem locais de felicidade, onde quem morre pode, por fim, fazer algo aleatório e sem o senso comum.