O sonho de Clarice era ser como eu. Ser alta, forte e
inteligente.
- Por que Clarice?
- Porque se eu for alta ninguém me chama mais de baixinha, se eu for forte todo
mundo vai ter medo de mim e se eu for inteligente serei igualzinha a ti.
- Oh, que linda.
Clarice era esperta, muito esperta. Na flor dos seus sete anos era uma menina
danada. Cheia de perguntas, cheia de preocupações, mas muito alegre e expansiva.
O problema é que Clarice não existe, Clarice é a figura de ideal dos sonhos de
um pobre pai que perdeu sua filha.
Perdeu quando ela tinha sete anos, a mesma idade de Clarice, perdeu quando ela
ainda sonhava em ser como o pai. Clarice virou uma fantasia, um conforto.
Ele senta na cama da filha já falecida e brinca com Clarice, conta histórias,
pula na cama e depois ela dorme em seu colo enquanto assistem televisão, mas
ele não consegue se afastar dela naquele sono. Acabada dormindo ali mesmo.
Cabeça encostada na parede, sentado ao lado da cama. Sua mulher entra pé, ante
pé e vai desligar a televisão que ficara ligada.
Ela tem medo de
acordá-lo, pois sabe a beleza desta situação. Mas olha para a cama e não ver
ninguém, apenas os lençóis meio bagunçados. Ela não pode ver Clarice, jamais
poderá. Não que Clarice não apareça para ela, aparece sim, mas ela não vê.
No outro dia de manhã, Clarice o acorda para fazer o café da manhã, arrumar as
coisas para que vá trabalhar. Mas ele só faz o café da manhã para que ela coma
e depois leve-a para a escola. Da escola volta para casa, não quer ir
trabalhar. Prefere ficar em casa, sentado no sofá, contando as horas para poder
ir buscar Clarice na escola e poder brincar com ela novamente. Sua mulher não
diz nada. Apenas beija-o na testa e se despede. Ela entende a beleza deste
gesto. Clarice tenta estimulá-lo a ser forte, a voltar à vida normal e que
esqueça dela, mas ele não quer. Ele prefere viver para ela a viver sua vida.
Chega a hora de buscá-la, mas Clarice está chorando. Ele pergunta o que foi,
ela não reponde; entra no carro de cabeça baixa. “O que foi princesa?” foi
assim para casa, ele tentando arrancar dela alguma palavra, e ela só depositava
lágrimas. Já em cima de casa ela fala:
- Papai não pode mais me buscar na escola. Papai tem que trabalhar.
Clarice era mesmo esperta, sabia que a doença de seu pai era por causa dela,
mas ela sabia que isso não era bom, era mal. Papai sorrir e responde:
- Nunca vou me largar de você.
E passam o dia juntos, fazem a tarefinha, almoçam, assistem filmes, brincam,
correm. Fazem tudo juntos. Mas ai chega um momento que ele não agüenta, para um
pouco, olha para o nada e como se Clarice desaparecesse, ele deixa uma lágrima
escorrer pela face, como se ele soubesse que Clarice preenchesse um vazio
latente. Ele dá meia volta e vai ao quarto da filha, a filha que já não existe.
Olha suas coisinhas, meche nas suas bonecas, e senta no chão.
Clarice sem entender vai correndo ao quarto:
-Papai por que você ta chorando?
Pai bota Clarice no colo:
- Nada não, deu saudade.
- Saudade dói né papai?
- É dói sim.
Seria fácil, muito fácil dizer para alguém que deveria sair desta situação a
vida continua, mas não é tão fácil. Sair desta situação é viver cada segundo
desta situação. Não é fácil. Ele adormeceu junto novamente, ele acariciando a
cabecinha de sua filha, ela esparramada no colo de seu pai.
No outro dia, o pai levanta-se antes de Clarice, bota-a na cama com jeito para
não despertá-la e vai preparar seu café, arrumar sua roupa, tomar um banho
(coisa que já não fazia há tempo) e fazer a barba. Clarice não levanta,
continua dormindo como num sono profundo, sono que só as grandes princesas das
histórias poderiam dormir. Ele, no seu silêncio mortal toma seu café todo
arrumado, lendo o jornal da manhã, e vê que o mundo não mudou muito.
“Faz apenas três meses que não leio”. Ao terminar sua xícara ele vai até o
quarto de sua filha, percebe que Clarice dorme sossegada, tranqüila. Ela não
precisa mais de proteção. Na verdade é o contrário. Ele acende a luz para
contemplá-la melhor, e dá um sorriso como só quem é pai pode dar ao ver o filho
numa situação engraçada; ela acabara de jogar o travesseiro no chão.
Ele vai buscá-lo e coloca-o em baixo da cabeça dela com cuidado para não
acordá-la. Volta para a porta do quarto, olha para ela, apaga a luz:
- Adeus Clarice, bons sonhos.
E desce as escadas para voltar a trabalhar.
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