quinta-feira, 7 de junho de 2012

Aniversário


Estava feliz. Comemorar 17 anos, sendo mulher e virgem não era para qualquer uma. Selecionou a dedo o vestido que queria para esta festa, e quem a viu na semana anterior escolhendo esta que seria a roupa a sua roupa, não imaginava a felicidade por dentro, de uma criança adulta, uma felicidade de poder mostrar a todos a bela roupa que comprara.  
Sua festa foi algo planejado com bastante calma, queria que tudo desse certo neste dia. Acordou, escovou os dentes e às 4 horas da tarde já estava arrumada com o diadema de lacinho que deu àquela garota, quase mulher, um ar infantil. Gostava de contrastes. Sua mãe fizera o bolo e encomendara os docinhos e salgados, todos bem calculados para que não tivesse restos, eram tempos difíceis, mas nada que impedisse a filha de comemorar sua data. Continuava feliz ao longo do seu dia.
Ela ainda não sentia nas costas o peso da idade, mas que peso? Dezessete anos não pesam tanto assim, mas 50 sim, estes pesam. Também não sentia reflexo nenhum de envelhecer. Seu rosto continuava perfeito, seu ar continuava alegre, seu sorriso ainda era um sorriso infantil e cheio de esperanças. Gostava de sorrir, principalmente em fotos.
Convidou três amigos apenas para sua festa. A primeira era Luísa, amiga de infância que a acompanhou durante toda sua vida até o ano passado, quando concluíram o terceiro ano e Luísa passou e ela, infelizmente, não. Separaram, mas continuavam unidas pelo coração de amigas. Luísa não via mais tanto a amiga, o namoro e a faculdade consumiam boa parte de seu tempo, e visitar ou sair com a amiga era uma coisa rara, mas hoje, sim, hoje poderiam botar o papo em dia. A segunda amiga era Cristine, esta ela conheceu no cursinho de inglês que começou neste ano. Sentaram juntas na primeira aula e até hoje andam juntas no cursinho, sente feliz de ter encontrado alguém que pudesse substituir sua eterna amiga, isso faz ela se sentir menos sozinha. O terceiro amigo é na verdade um filho da amiga de sua mãe; ambas as famílias rezam para que desta amizade saia um namorico e quem sabe um casamento, sim um casamento entre os dois filhos da família seria o ideal.
Quanto mais as horas passavam mais apreensiva ela ficava, 18 horas, 19 horas e só agora o telefone toca. Olá Luísa, você está chegando? Não meu amor, infelizmente estou muito cheia com as coisas da faculdade, você entende né? Ontem eu saí com Jorge e quando vi tinha ficado muita coisa por fazer, vou ter de varar a noite. Tudo bem ai com você? Tudo sim, mamãe fez um bolo lindo, amanhã deixo um pedaço na tua portaria então. Oh, obrigada amiga, você é uma flor. E me diga, os convidados chegaram? Ainda não, mas vão chegar. Que bom, eu quero que seu dia seja perfeito hoje, ta? Fique tranqüila hoje você terá uma festa linda, cheia de gente na casa e terá presentes ótimos. É, eu espero que sim.
Quando a amiga desligou o telefone ela ainda ficou um tempo parada, como esperando alguma coisa que dissesse que aquilo era uma brincadeira, ou que fora engano. Mas não, foi verdade e sua amiga de infância, pela primeira vez, não virá à festa dela. Sentou no sofá, ligou a televisão e ficou esperando os outros convidados. Meia-hora de espera e o telefone toca mais uma vez, desta vez é sua amiga Cristine.
Olá minha linda. Meu bem, eu sinto muito mas não vou poder ir hoje, sabe? Minha tia faleceu, mamãe está indo agora ao hospital e não posso deixá-la sozinha. Nossa, sério? Sim, sim, aconteceu agora a pouco sua morte, já esperávamos essa notícia há alguns dias, mas ela veio logo hoje, infelizmente. Mas ei, não deixe se abater não, comemore seu dia, fique muito feliz, ganhou muitos presentes já? Espero que sim. Sua mãe ta ai? Sim está, ela fez um bolo lindo. Que bom, guarda uma fatia para mim, tudo bem? Tudo, eu levo terça para o cursinho. Ótimo amiga, obrigada. Fique tranqüila, eu vou faltar hoje, mas você nem vai dá por minha falta seu amigos vão me fazer passar despercebida, tchau, beijos.
Ficou pensando na dor da mãe, bichinha, agora ela está sozinha. Seu marido foi embora, sua única irmã faleceu e agora só lhe resta a filha. Pensando bem, ela não ficará tão só, ainda lhe resta a uma pessoa.
Resolveu retirar os sapatos cor-de-rosa e esperar pelo seu amigo sentada no chão vendo a televisão. O telefone tocou apenas dez minutos depois, seu amigo meio desconcertado deu um alô mais assustado que interessado em saber quem estava na linha. Oi, tudo bem? Ela respondeu com um tudo meio sem intimidade, meio que respondendo só por educação, já que embora soubesse o nome dele, pouco sabia dele e ele menos ainda dela. Não vou poder ir tá? Falou ele com palavras secas e sem intimidade, das quais ela respondeu com um tá desesperançado. Um longo silencio perdurou na linha e os dois desconhecidos resolveram desligar o telefone já que cada um não tinha o que falar para o outro.
Ao desligar o telefone ela olhou para a mesa e viu o bolo, os doces e os salgadinhos intactos. Seu vestido ela olhou e se sentiu uma boba por estar usando. Sentiu-se uma criança aprisionada dentro de uma burca, uma burca que usava porque queria, mas não tinha certeza se queria realmente. Abriu um botão do decote, ficou mais sensual, retirou as meias e atirou longe o diadema que lhe dava um ar infantil, agora sentia-se adulta. Uma mulher. Não tinha raiva, não tinha rancor, apenas tinha se libertado de coisas que lhe desagradavam de tal forma que agora ela poderia ser livre. A solidão pela qual passava jamais seremos capazes de descrever, já que ela se fechou e ao mesmo tempo se libertou.
Partiu uma fatia grossa de bolo, colou junto na bandeja dos salgadinhos, jogou os doces por cima e sentou-se no chão da varada olhando a casa toda arrumada com aquela mesa posta sem ninguém. Devorava os docinhos, comeu todos em três partes. Não saboreava a comida, mastigava muito, mas não saboreava. Depois comeu o bolo com a mão, deitou a bandeja no chão e foi jogando um por um os salgadinhos dentro de sua boca voraz. Engolia os doces para não engolir o mundo, e sentiu dentro de cada mastigada uma força da qual jamais pudera saber que tinha. Olhou para si e continuou a se achar boba. Terminou de comer, não levantou, ali ficou, olhou mais uma vez para seu corpo e teve vontade de se conhecer ali. Teve medo, mas um impulso a fez sentir seus seios, depois passou as mãos por todo o corpo e não teve mais medo, começou a descobrir a si mesma; dentro de sua profundeza dormia uma mulher da qual ela não conhecia e não sabia que habitava, mas sabia que tinha acordado.
Acordou e queria saber quem lhe tinha apurrinhando, já era tarde para voltar atrás e pedir desculpas por incomodar. Não tinha mais medo. Após dez minutos de caricias ela sentiu algo que jamais tivera sentido em toda sua vida. A ausência dos únicos amigos que tinha não lhe fez mal, pelo contrário, lhe fez um bem tremendo, ela finalmente pode saber quem havia dentro de si, e era um animal feroz. Gritou baixo. Ofegante, deitou-se no chão da varanda e olhou para o teto com um ar de fadiga e após a efusão de sentimentos tinha visto que já não era a mesma pessoa e isso lhe deixou triste. Bateu dentro do peito um coração diferente, sentiu sim, pela primeira vez, uma melancolia que a pôs em choque consigo. Não entendia nada da vida, nunca tinha sentido prazer, nunca tinha tido raiva, nuca tinha se sentido só, nunca tinha tido um ato de desequilíbrio emocional e agora se via vivendo tudo isso de uma só vez, numa avalanche de emoções como se cada segundo que estava vivendo agora valia pelos 17 anos de vida da qual já questionava se era realmente vida.
Decidiu olhar sua vida por outro ângulo, subiu na varanda, apoiou-se no ferro e olhou para baixo com a cabeça toda inclinada. Sentiu o vento no rosto, sentiu o frio da noite, parece que finalmente tinha descoberto o frio. Não teve medo. Encarou o chão com um olhar triunfal, já não tinha medo, já não tinha o que esconder. Seus olhos não mentiam, o chão era longe. Mas mesmo assim encarou, fixou seu olhar num único ponto e disse para si: venci.
Ficou quieta olhando para o chão, mas de repente lhe veio a idéia de se jogar da varanda. Que sensação deve ser essa? Não tinha medo, agora a vida para ela era viver cada segundo, não podia perder tempo. Que sensação será essa a de sentir o mundo passar por si e saber de algo que poucos sabem sentir? Chegou a levantar a perna como se fosse se jogar com os braços abertos. Mas botou o pé de volta no lugar, não teve medo, teve um pensamento: ainda não. Sabia que precisava viver cada segundo, mas viveu apenas alguns segundos de uma vida de dezessete anos, queria viver mais. Queria sentir a liberdade de ficar em pé na varanda, queria sentir a liberdade de se descobrir mais e mais, então resolveu descer.
Sentou no chão da sala olhando para a televisão desligada. Sua festa de dezessete anos foi a melhor que já tivera, a partir dela ela descobriu que somos sozinhos neste mundo. Desta festa, ela descobriu quem ela era, quem deveria ser e o que deveria fazer.
Sozinha, sentada na sala, olhando para o nada, a noite passou, e ela com um sorriso no rosto olhou para os lados e se sentiu cheia de gente, sentiu como nunca tinha sentido, sentiu que finalmente sabia viver. Ela, sozinha, sentada na sala com o bolo na mesa com apenas menos uma fatia de bolo, sozinha.

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