sexta-feira, 1 de junho de 2012

O baú


Quando comecei a te contar minha história senti uma necessidade de me rever. Comecei a vasculhar meu baú, encontrar aquela menina que fui e hoje não sei se sou. Eu precisava também, saber se aquela que eu dizia era realmente aquela que eu era. Confesso que revirar tantas histórias, lembrar de coisas que eu não sabia se devia lembrar foi uma experiência mágica, coisa que psicanalista nenhum consegue revirando a mente de uma pessoa. Tantos fatos que há fora de nossa mente, fora de nossa vista. Tive o primeiro susto ao encontrar brincos dos quais não usava fazia tempo. Não lembrava porque os guardara, nem sabia quando tinha acontecido isso. Coloquei-os nas orelhas e voltei ao serviço, antes dei uma olhada no espelho e vi que estava bem com aquele par e senti o rejuvenescimento batendo na alma, rejuvenescimento com coisas antigas. Voltei ao serviço.
No baú estava jogado tudo que eu não usava mais. Não sei se eu não queria mais usar, se eu desgostava do uso, cansara, ou simplesmente queria esquecer aquelas coisas todas. Encontrei cartas, muitas cartas. Cartas de alguns ex-namorados e cartas que são, na verdade, bilhetes. Engraçado lê isso tanto tempo depois, parece um registro histórico mas não tem nada histórico, são coisas que a gente guarda para guardar de lembrança, mas uma lembrança que nunca vamos reler. O Pessoa tava certo, “todas as cartas de amor são ridículas, mas só as pessoas quem não escreveram cartas de amor é que são ridículas”. Hoje, ao lê-las, tudo parece tão simplório, aquele grande amor que ficou registrado não passa de linhas no pape e lendo sinto uma frieza nas palavras. Ridículo, mas necessário. Joguei novamente as cartas no fundo do baú, lá é o lugar delas, um dia mostrarei a alguém que já tive cartas de amor. Encontrei no meio ingressos de filmes imperdíveis, de shows e até um pedaço de cartão de crédito que foi do meu primeiro presente de adolescente.
Dentro do baú há também muitas blusas, shorts, e até um par de sapatos que usei no meu ensino médio. Minha nossa!, não sabia que havia guardado tanto coisa, cada uma com uma história da qual eu não lembrava, cada qual com sua carga de preciosidade.  Esta blusa usei nos meus 15 anos na hora da festa após aquele baile interminável e cansativo. Nossa, e ainda conserva o cheirinho. Encontrei fotos de minha família, alguns que já se foram... vovó, vovô, a foto do meu cachorro, sim meu cachorro que foi enterrado como se gente fosse. Nunca pensei que fosse tão bom revirar o baú de minha vida. A gente vai colocando aqui toda a nossa vida e esquece de observar, mensurar e excluir. Mas agora vejo que nada deve ser retirado, tudo faz parte de mim ainda, tudo ainda está vivo porque para mim tem um significado. Meus filhos se um dia forem revirar meu quarto após minha morte e encontrarem este baú, na certa, o tratarão como algo cheio de coisas velhas; para eles isso é algo morto como o dono. Mas não, aqui há história. Na certa eles olhariam as peças, não entenderiam o significado de umas e esvaziariam o baú e depois levariam ele a um brechó e com todas as outras coisas não saberiam o que fazer e, certamente, o lixo seria a solução.
Infelizmente é assim que fazem quando pessoas estranhas invadem nossas vidas, não conseguem entender o real significado de certas coisas estarem ali, simplesmente acham que nada faz sentido porque não são capazes de entender o que aquilo carrega. A morte do dono é também a morte de sua obra e de tudo o que juntou. A posteridade nunca entende o que é nosso só nosso e que não deixamos ninguém invadir.
Resolvi parar tudo. Eu não precisava mais daquilo, já tinha me redescoberto e já sabia quem eu era, eu sou eu. As coisas do baú são minhas, todas são minhas, todas tem a sua importância que eu entendo muito bem. Nada pode ser descartado, nem as cartas de amor.
Dotada de uma felicidade da qual fazia tempo que não sentia, ela guarda todos os seus documentos, todas as suas roupas, fecha o seu baú e joga dentro do armário. Lá está bem guardada minha memória, a salvo de invasores e a salvo de mim, eu não posso bagunçar aquilo, aquilo é meu, aquilo sou eu.

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