Quando comecei a te contar minha história senti uma necessidade de me
rever. Comecei a vasculhar meu baú, encontrar aquela menina que fui e hoje não
sei se sou. Eu precisava também, saber se aquela que eu dizia era realmente
aquela que eu era. Confesso que revirar tantas histórias, lembrar de coisas que
eu não sabia se devia lembrar foi uma experiência mágica, coisa que
psicanalista nenhum consegue revirando a mente de uma pessoa. Tantos fatos que
há fora de nossa mente, fora de nossa vista. Tive o primeiro susto ao encontrar
brincos dos quais não usava fazia tempo. Não lembrava porque os guardara, nem
sabia quando tinha acontecido isso. Coloquei-os nas orelhas e voltei ao
serviço, antes dei uma olhada no espelho e vi que estava bem com aquele par e
senti o rejuvenescimento batendo na alma, rejuvenescimento com coisas antigas.
Voltei ao serviço.
No baú estava jogado tudo que eu não usava mais. Não sei se eu não queria
mais usar, se eu desgostava do uso, cansara, ou simplesmente queria esquecer
aquelas coisas todas. Encontrei cartas, muitas cartas. Cartas de alguns
ex-namorados e cartas que são, na verdade, bilhetes. Engraçado lê isso tanto tempo
depois, parece um registro histórico mas não tem nada histórico, são coisas que
a gente guarda para guardar de lembrança, mas uma lembrança que nunca vamos
reler. O Pessoa tava certo, “todas as cartas de amor são ridículas, mas só as
pessoas quem não escreveram cartas de amor é que são ridículas”. Hoje, ao
lê-las, tudo parece tão simplório, aquele grande amor que ficou registrado não
passa de linhas no pape e lendo sinto uma frieza nas palavras. Ridículo, mas
necessário. Joguei novamente as cartas no fundo do baú, lá é o lugar delas, um
dia mostrarei a alguém que já tive cartas de amor. Encontrei no meio ingressos
de filmes imperdíveis, de shows e até um pedaço de cartão de crédito que foi do
meu primeiro presente de adolescente.
Dentro do baú há também muitas blusas, shorts, e até um par de sapatos
que usei no meu ensino médio. Minha nossa!, não sabia que havia guardado tanto
coisa, cada uma com uma história da qual eu não lembrava, cada qual com sua
carga de preciosidade. Esta blusa usei
nos meus 15 anos na hora da festa após aquele baile interminável e cansativo.
Nossa, e ainda conserva o cheirinho. Encontrei fotos de minha família, alguns
que já se foram... vovó, vovô, a foto do meu cachorro, sim meu cachorro que foi
enterrado como se gente fosse. Nunca pensei que fosse tão bom revirar o baú de
minha vida. A gente vai colocando aqui toda a nossa vida e esquece de observar,
mensurar e excluir. Mas agora vejo que nada deve ser retirado, tudo faz parte
de mim ainda, tudo ainda está vivo porque para mim tem um significado. Meus
filhos se um dia forem revirar meu quarto após minha morte e encontrarem este
baú, na certa, o tratarão como algo cheio de coisas velhas; para eles isso é
algo morto como o dono. Mas não, aqui há história. Na certa eles olhariam as
peças, não entenderiam o significado de umas e esvaziariam o baú e depois
levariam ele a um brechó e com todas as outras coisas não saberiam o que fazer
e, certamente, o lixo seria a solução.
Infelizmente é assim que fazem quando pessoas estranhas invadem nossas
vidas, não conseguem entender o real significado de certas coisas estarem ali,
simplesmente acham que nada faz sentido porque não são capazes de entender o
que aquilo carrega. A morte do dono é também a morte de sua obra e de tudo o
que juntou. A posteridade nunca entende o que é nosso só nosso e que não
deixamos ninguém invadir.
Resolvi parar tudo. Eu não precisava mais daquilo, já tinha me
redescoberto e já sabia quem eu era, eu sou eu. As coisas do baú são minhas,
todas são minhas, todas tem a sua importância que eu entendo muito bem. Nada
pode ser descartado, nem as cartas de amor.
Dotada de uma felicidade da qual fazia tempo que não sentia, ela guarda
todos os seus documentos, todas as suas roupas, fecha o seu baú e joga dentro
do armário. Lá está bem guardada minha memória, a salvo de invasores e a salvo
de mim, eu não posso bagunçar aquilo, aquilo é meu, aquilo sou eu.
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