segunda-feira, 28 de maio de 2012

Nasce um eu lírico


Eram tempos da sétima série na qual os jovens deixavam aquela mania de serem os heróis dos filmes e desenhos e queriam ser heróis de verdade. Heróis do povo, seja como músico, ator ou até professor. Eram tempos em que a puberdade estava latente naqueles seres tão obtusos, que acreditavam saber mais do que sabiam; seus corações falavam de liberdade, de amor, de sexo e eles mesmos se reprimiam sem saber, de fato, o real significado da liberdade. As conversas se baseavam nas novidades que o mundo trazia: filhos da era da Internet, do celular, das músicas digitais, nós fomos cobaias de um mundo que queria se mostrar novo; nós as cobaias do novo século não sabíamos que o nosso gosto ia definir o gosto do futuro, muito menos sabíamos que o mundo estava mudando. Para nós não existia o ontem, o depois, existia o agora e o agora era como sempre fora.
De toda essa metafísica, de todos estes sentimentos, aquele que talvez fosse mais difícil de conviver era a sinceridade. A sinceridade para os adultos era algo complicado, devia ser mensurado para não ferir o outro. Para os jovens, a sinceridade era algo mensurado para não nos ferirmos ou perdermos o respeito dos colegas.
Nossa professora de redação era também nossa professora de gramática e nos acompanhou desde a 5º série, ou seja, talvez ela conhecesse mais todos nós que nossas mães. Pode acontecer, afinal, nossa sinceridade em casa é tolhida para se revelar na rua e vice-versa, quem sabe. A professora queria saber, apenas, a nossa sinceridade.
Uma senhora amável, sempre sorridente, acho que senhora traz uma sensação de que fosse velha, mas tinha no máximo uns 30 anos. A vida às vezes nos parece injusta com as palavras e sendo professora de redação ela bem sabia disso.  Com um sorriso no rosto ela entra em sala, coloca os fichários na mesa e diz que “hoje vocês vão fazer uma redação e me entregar ao fim da aula”. A turma toda, obviamente, contestou. Ninguém queria sofrer em tão pouco tempo, mas a mesma nos acalmou com sua autoridade de professora, “não adianta, eu quero para hoje e o tema será sobre o primeiro beijo”. A sala toda fez um silêncio como que se sentindo invadida em sua intimidade, sendo roubado pela primeira vez aquilo que não contávamos a ninguém ou para poucas pessoas, não sei explicar.
Eu ali estava calado, no meio da sala, calado fiquei. Não lembro o que se passava na cabeça, apenas queria fazer aquela redação. Nunca fui um gênio nas redações escolares porque o que eu queria escrever nunca era o que a redação permitia. Nem por isso eu era um mau aluno, pelo contrário, dentre os colegas da idade eu escrevia até bem. Após alguns cochichos e risos, a turma já se conformara com o tema e já fazia piadas do que iriam escrever. Eu silencioso estava, silencioso fiquei.
Não pensei muito e fui escrevendo sobre o tema, sobre a experiência que tinha, ou seja, nenhuma. Fui sincero com a professora, escrevi uma carta para ela com toda a liberdade que um texto dissertativo não permitia; acho que tal liberdade nunca mais uma prova de redação me daria. Em pouco tempo revelei naquelas linhas que nunca tinha beijado, que também não tinha pressa, que estava mais preocupado com os estudos do qual, quem sabe, o namoro poderia atrapalhar. Disse que a vida era muito mais que aquele sentimento e que estaria esperando o primeiro beijo com o coração aberto, e ele viria somente no dia que estivesse preparado. Simples. Escrevi e entreguei à professora aquela que para mim tinha sido uma redação comum, só que com mais liberdade. Lembro que não demorei muito escrevendo, apenas queria brincar no intervalo.
Surpresa tivemos na aula seguinte, “quando eu mandei vocês escreverem sobre o tema eu esperava a sinceridade, então o que eu li de vocês foi receitas de como treinar o beijo, confissões de quantos beijos deram, e até coisas das mais absurdas, como dos problemas que tiveram tentando beijar. Mas uma redação - nesse momento senti o coração gelar - uma redação foi sincera, linda, poética e inocente do jeito que ninguém foi. Já li na outra sala, na sala dos professores e vou lê aqui para vocês, o aluno mereceu um nove (a maior nota) pela sinceridade. Bem, se ele quiser eu revelo quem foi, e digo logo que foi desta sala – ela olhou para mim e viu meu rosto vermelho, estático, com uma cara pedindo que não revelasse - pois bem vou lê”.
Leu toda a redação e os alunos riram de alguns trechos, ela riu de outros, mas no fim estava admirada, sei lá, talvez sentisse uma sensação de esvaziar seu peito, dessas sensações que fazem valer à pena a escolha de nossa profissão.
Toda vergonha estava em mim naquele momento. Contudo, fiquei feliz por ela ter gostado e da nota que tinha tirado, mas estava profundamente confuso, sem saber nada do que aquilo significava. Alguns alunos descobriram que fui eu o autor, mas não conseguiram provar. Talvez perceberam a cara dela ao entregar a minha redação, talvez viram meu nome ao atravessar a sala com a redação nas mãos, não sei.
Não sei se ela tirou cópia da redação, ou se aquele incidente a acompanhou pelo resto de sua vida; no mesmo ano ela casou e foi morar em outro estado. Minha mãe leu a redação e fez uma cara de simpatia para comigo, que não sei definir bem até hoje o que significava. Talvez ela tenha visto ali a sua educação no filho, os pensamentos de que um dia o garoto vai agradecer por ter pensado assim, na sinceridade não sei.
Mas este fato, talvez a professora não tenha percebido, minha mãe também não e muito menos os alunos, colegas de sala, que aquela redação representava o nascimento de um escritor. Sim, ali havia uma semente de algo que viria a ser a única razão da existência desta pessoa: as palavras. No momento ninguém percebeu nada, inclusive eu, mas hoje olho para o passado e vejo que aquilo significou a maior liberdade poética que um escritor pode querer, muitos, talvez, até hoje não tenham conseguido ser sinceros consigo e ter escrito no papel o que realmente queriam dizer. Eu, com pouco mais de 12 anos, não sabia, mas tinha descoberto a essência do escrever. Escrever é um ato de libertação e de sinceridade.
Certa vez, li um texto de Jorge Amado no qual ele confessava que havia passado por algo parecido, só que no seu caso foi um padre muito intelectual que havia descoberto nele, um escritor e ajudou o garoto na construção de seu universo poético. Em vez de beijo, o tema foi sobre o mar, em vez de vergonha, Jorge Amado sentiu-se orgulhoso e foi respeitado pelos coleguinhas. Contudo, após a leitura do texto de Jorge Amado foi que me toquei do meu passado e daquele fato que estava já sepultado em minha memória, aquele foi o momento que descobri que eu também tinha tido um nascimento como escritor, um nascimento poético.
Já faz sentido o porquê de tantas coisas lançadas ao papel como um desabafo. A partir daquela redação foram se seguindo ao longo dos anos várias confissões, havia em cada uma a poesia, o lirismo da libertação, e hoje há um homem à procura daquela criança que não tinha medo, que apenas queria escrever para poder brincar no intervalo.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Descartando vinis

                             
Eu tinha um disco de vinil, joguei fora. Joguei também as caixas e toda aquela tralha. Não vou contar a minha história, para que contaria? Joguei-a fora. Peguei os sonhos, embrulhei numa caixa e descartei pela janela, talvez tenha sido mais fundo, talvez um precipício, ou atirei no mar. Junto com os sonhos foram às esperanças, os planos e algumas pessoas que eu julgava essenciais para mim num certo momento; sim descartamos pessoas.
Acredito que a vida é meio isso, o tempo passa e vamos nos desfazendo daquilo que não presta ou que dizem ser antiquado, desatualizado. Queremos sempre comprar o moderno, viver o moderno, ficar na moda e sermos “presentes” com o que o mundo dita de “presente”. Mas pensamos apenas em nós, pensamos na felicidade momentânea e não pensamos no que construímos. Talvez você jogue junto com a vitrola sua imensa coleção de vinis. Nenhum problema, você faz outra só de cd’s. Pode até ser a mesma coleção do artista, mas não será mais a mesma coleção: não terá a mesma poesia nem lirismo.
Pessoas são todas iguais fisicamente, emotivamente, e até em gostos.  Amigos também são iguais: pagam a conta, ligam nos momentos difíceis e aparecem em fotos. Mas nunca são as mesmas pessoas.
O tempo vai passando e vamos moldando o que tínhamos por sólido em algo mais tangível à realidade, mais aceitável, mais fácil, por quê?  Talvez a coleção de vinil não seja mais sua, já se perdeu no tempo. Talvez o seu eu, agora, seja colecionar cd’s. O grande problema é que nem sequer pensamos em nossos atos do presente, e talvez nem pensaremos no futuro, apenas fazemos. Jogar uma vitrola no lixo não é simplesmente jogar uma vitrola no lixo, é algo que nasce de um tempo que nem nós sabemos, não nasce com a gente. Alguém produziu o cd, alguém comercializou e pronto, nos vemos obrigados a mudar. Conhecemos novas pessoas, não sabemos de onde elas vieram e pronto, nos encantamos e queremos descartas as antigas. Velhas namoradas não inspiram o mesmo prazer que uma nova namorada, velhos amigos não inspiram o mesmo prazer que novos amigos.
Vivemos novas pessoas e somos “obrigados” a descartar as que não nos servem mais, somos “obrigados” a viver uma nova aparência com o medo de desagradar. E no jogo das aparências desagradamos a nós mesmos. Descartem vinis, descartem pessoas e sejam felizes até enjoarem da “felicidade”.