Todas as pessoas viraram
funcionários públicos. Ninguém naquele imenso país de dimensões continentais
fazia outra coisa a não ser servir ao governo, seja ele Estadual, Federal ou Municipal.
E aqueles que não serviam ao poder Executivo, serviam ao Judiciário ou ao Legislativo.
Houve um tempo que era um sonho entrar num desses cargos, onde pessoas dormiam
pensando no dia que teriam tranquilidade pelo resto da vida. Agora não, até
quem não quer é obrigado a assumir um cargo público. O que não poderia ser
diferente neste país onde tudo é motivo de fetiche e sonho. O funcionalismo
público, que deveria ser, pelo visto, algo de primeiro mundo, com diversos
especialistas e pessoas dispostas a trabalhar, tornou-se mais burocrático e
corrupto. Todo mundo sabia, todo mundo suspeitava, mas ninguém denunciava com
medo que alguém lhe denunciasse. O país inteiro estava preso numa grande
engrenagem estatal da qual jamais conseguiria sair. Primeiramente as pessoas
entravam nos serviços Municipais. Seriam atendentes, copeiras, técnicas, analistas
dos serviços municipais e etc. Seja ele ou ela de que canto do país for, teria
de abarcar toda a população da cidade. Se o cidadão quiser, não precisaria
fazer mais nada que teria esse emprego para toda a vida, seria servidor pelo
Município, ganharia um salário e poderia morrer eternamente feliz recebendo uma
quantia fixa ad eternum. As pessoas
não se aposentavam, aposentadoria era prejuízo para o país. A engrenagem estava
tão disposta que mesmo velho e decrépito, sem esperanças e forças a pessoa,
mesmo não podendo ir ao trabalho contribuir, continuava a receber como se
trabalhador fosse, e ficava em casa apertando botões fazendo para promover a propaganda
do governo ao qual trabalhava, para que fomentasse a população, como se
precisasse, a usar os produtos públicos.
Caso alguém quisesse sair do
serviço Municipal para o Estadual ou Federal, ou para o Legislativo ou Judiciário
não era tão complicado, mas teria que fazer uma prova. Prova de habilidades que
envolviam conhecimentos diversos e tão inúteis para os cargos, que faziam
questionar até mesmo a existência da humanidade. Por exemplo, caso alguém
quisesse migrar para o Estado e ganhar 40% a mais, deveria se inscrever numa
lista para ser sorteado. Assim, caso quisessem entrar no poder judiciário para
ser Juiz, ou no Ministério Público para ser promotor, era por sorteio, neste
caso anual, de pronto que qualquer um poderia ser o que quisesse caso tivesse a
sorte num sorteio, que era transmitido ao vivo durante o último dia do ano.
Fato tão esperado quando o natal, ou seu aniversário. Neste último caso, o
acréscimo no salário era de quase 90%. A engrenagem era tão complexa e precisa,
que não tinha como desmontar esta lógica pois se não teríamos desemprego. Foi o
medo do desemprego num passado longínquo que fez os governantes tomarem
decisões drásticas.
O país estava mergulhado numa
crise profunda, pessoas estavam depressivas porque não conseguiam seus
objetivos pessoais, quem queria ter um emprego nem sempre podia, porque a
concorrência era grande para os concursos e para ingressar numa empresa, quem
tinha uma empresa nem sempre conseguia se sustentar porque os tubarões
internacionais derrubavam qualquer uma que surgisse em qualquer ramo que fosse.
E a quantidade de gente infeliz e desempregada ia aumentando vertiginosamente.
Os governantes não podiam fazer nada. Nada.
As cartas de suicídio chegavam
aos montes nas mãos do Presidente, cartas que pediam emprego, cartas que diziam
que estavam indo embora para o outro país; cartas que apenas cobravam uma
solução e o Presidente atônito não sabia mais o que fazer. As filas dos
cursinhos e os materiais voltados para concurso vendiam como nunca, todos
queriam entrar no funcionalismo, mas até nisso era difícil de entrar. Até o
momento que um sábio deputado resolveu empregar toda a população do país nos
braços do estado.
Como, bradou um deputado
atônito com a afirmação do amigo no alto da Tribuna, o que foi acompanhado em
coro pelos outros setecentos e cinquenta deputados eleitos inutilmente para
resolver os problemas do país e que agora, enfim, pareciam ter achado uma
explicação para a sua existência tão laboriosa, Simples, respondeu ele, e
explicou todo o seu plano que expliquei acima.
A população ficou feliz ao
ouvir a notícia, os milhões de desempregados e subempregados sonhavam com o dia
de terem um emprego decente e aquela solução parecia por fim a qualquer angústia. De pronto o deputado disse que no outro dia
mesmo iria apresentar o pedido ao presidente e disse que ele mesmo seria voluntário
a ingressar no serviço público de outra forma. De pronto foi a decisão, a
partir de agora só havia aquela forma de ingressar no serviço público,
começando pelo município, de tal sorte que, não existiam mais eleições para
prefeitos, vereadores, deputados, senadores, presidente, governadores. Nada.
Era proibida qualquer forma de disputa para ingressar no serviço público, quem
quisesse ser presidente, governador, deputado, era só se inscrever numa lista
que de ano em ano chamava o próximo da lista, de tal forma que a cada ano
tínhamos um novo presidente e um novo governador e deputado e senador, de tal
forma que qualquer um poderia ser, bastava se inscrever e aguardar a lista, não
havia outro meio.
As pessoas ficaram felizes no
início, a chance de vencer na vida por fim, parece ter atingido a todos
coletivamente e que de agora por todas foi sepultada a tristeza. Mas foi só
passar o tempo que a euforia foi embora e o marasmo tomou conta da população
que trabalhava dez horas por dia para o governo. Tudo era igual no país, tudo
era daquela forma e todos tinham um destino, o mesmo. Decerto acabamos com a
miséria e o desemprego, decerto não há mais mendigos e putas nas ruas, não há
jogadores de futebol sem emprego, não há apresentadores de TV mendigando
audiência e não há bailarinas, atores, diretores, músicos e cientistas rezando
para conseguir um trabalho. Todos estão empregados no Estado.
Todos são funcionários
públicos de carreira. Não há infortúnios, todos são estáveis. Os apresentadores
de TV trabalham para os programas de TV do Estado onde não é preciso fazer
nada, apenas narrar os acontecimentos. Os jornalistas apenas mostram os
acontecimentos do estado, onde investe, quem entrou, quem saiu de tal cargo e
só. Como as pessoas não se viram mais sozinhas, não há mais uma só briga de
vizinho, um assalto, um protesto nas ruas, nada.
Os assaltos, este fato é curioso, foi extinto.
Ninguém rouba nenhum pão, nem água e nem a caneta do colega, fato tão comum
entre amigos do passado e conhecidos, perdeu totalmente a graça, todo mundo tem
uma caneta e se perder o Estado dá outra que não tem mais para quê. Os estupros
foram reduzidos a zero, os homens podiam contar com o serviço de prostitutas
municipais, que recebiam um salário do governo para se deitarem com quem quisesse
contratá-las e consumi-las. Era só ligar para o setor de prazeres mundanos do
governo que era mandada uma prostituta aleatoriamente escolhida, e o
contratante não precisaria pagar. As mulheres dispunham do mesmo serviço,
embora no início tivesse protesto dos maridos, hoje eles aceitam, pois o
casamento virou algo tedioso. Os maridos não sentem mais prazer no sexo com
suas esposas e as mulheres também não sentem mais nada.
Neste país não existe namoro,
noivado, nada destas etapas tediosas. Todos nascem casados e poderão viver
juntos quando completem dezoito anos, já que desde o nascimento todos já tem um
emprego público garantido. Não tem para que esperar juntar dinheiro para
comprar uma casa, o programa de habitação do governo, que abarca construtoras e
engenheiros do governo construiu uma casa para cada habitante e seus filhos, de
ponto que há casas vazias nas ruas não porque alguém queira vender, ou não
possa pagar, mas simplesmente porque o dono ainda não nasceu. As mulheres não precisam
mais cozinhar, o governo dispõe de uma infinidade de cozinheiras que abarcam
toda a população e fazem o mais variado prato. É só ligar e pedir que o governo
deixa a comida na sua casa, você não precisa perder tempo tendo que ir para a
cozinha, não precisa trabalhar nisso, não mesmo.
Para a saúde o governo dispõe de belíssimos
hospitais com médicos e enfermeiros capacitados que atendem a população de
pronto, todos funcionários do governo, todos concursados e atendendo com aquele
olhar rotineiro de quem sabe todas as doenças que assolam a população pois até
as doenças parecem estatais.
Os músicos trabalham fazendo
músicas para o governo, ou podem até fazer músicas próprias, mas o trabalho é
distribuído gratuitamente para a população, já que o governo se encarrega de
distribuir a música do artista para toda a população, de tempo que ele não
precisa se preocupar em vender, ou não vender, antes de nascer a composição ela
já está vendida. Os escritores e poetas são servidores públicos de carreira
também. Contam histórias de amores públicos e sonhos estatizados. Suas almas
são do governo e para eles é cômodo pois a população inteira tem acesso a seus
livros e poesias, é distribuído gratuitamente em cada esquina e em cada lugar,
fazendo com que a população não precise ir a livrarias, os livros estão nas
ruas, nas calçadas, ao alcance das mãos.
Os professores são
funcionários públicos, matemática e física são ensinados nas escolas e nos
pontos de ônibus. Todos os alunos que se formam num curso de licenciatura já
estão empregados, trabalham onde quer que tenha vaga. As crianças não reclamam
da falta de professores pois eles existem aos montes e todos são formados em
universidades do governo e dão aula em programas do governo. De modo que, se
qualquer cidadão precisar fazer uma conta, ou quiser tirar uma dúvida há sempre
um professor de prontidão no telefone ou na rua para resolver. Dicionários não
existem mais, professores de Português são encontrados nos lugares mais
inesperados, todos funcionários públicos.
Os produtos são todos feitos
pelo Estado: desodorante, creme, perfumes, estojos, bolas, plásticos, mesas,
computadores, celulares, relógios, óculos, bolas, telefones, grampeadores,
clips, pilhas, bermudas, camisetas, sapatos, livros, tudo e todas as coisas são
advindas das fábricas do Estado, que fornecem todos os produtos e serviços para
a população, alguns são fornecidos gratuitamente, como os objetos de menor
valor e outros são comprados a preço de custo, empregado milhares de
trabalhadores.
De forma que comprar um carro
é muito simples, o governo comprou todas as fábricas de automóveis do país e lá
empregou seus funcionários que dia a dia colocam novos carros e ônibus nas
ruas, onde todos podem adquirir quantos quiserem e onde quiserem, basta ligar e
pedir o modelo que o governo leva na sua casa e desconta de seu salário. As indústrias de viagens também são do
governo, com aviões do governo com funcionários públicos capacitados e
empregados. Os pilotos são funcionários de carreira que pilotam para todos os
cantos do país com um trabalho proporcional a sua capacitação.
Os jogadores de futebol jogam
para o governo, todos os times foram comprados e todos vestem uma só camisa. O
teste para jogador é muito simples, após virar funcionário Municipal se
inscreve no setor necessário, se for sorteado, vira jogador municipal, em jogos
locais. Para ser um jogador Federal ou Estadual o procedimento é o descrito
acima, onde as ligas e estruturas são maiores.
Este país de natureza singularíssima
e virtudes preciosistas, funciona como uma grande engrenagem, onde o que sair
faz o país perder os trilhos. Com todos empregados no funcionalismo público não
há o que reclamar e protestar, tudo funciona e tudo está interligado. Não há
mais medos e sonhos, tudo está ao dispor de todos, menos a morte, essa atua por
sua conta, a morte cumpre seus deveres na hora que quer e quando quer, os
cemitérios, todos públicos, parecem locais de felicidade, onde quem morre pode,
por fim, fazer algo aleatório e sem o senso comum.
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