Eram 16:30, o
sol já perdia sua força na cidade do Recife e as pessoas começavam a
recolher-se para suas casas após um dia inteiro de trabalho. O ônibus parado em
frente à praça do Diário tinha poucas pessoas, mas, em breve, estaria cheio.
Subiram quatro pessoas nesta parada e o motorista deu, por fim, a partida.
Subiu um senhor de 60 anos com uma sacola imensa nos braços, na certa era
ambulante. Carrega nas costas o peso de seu trabalho e no rosto o peso de sua
idade. Começou cedo a trabalhar. O pai, que era comerciante do Recife em tempos
áureos, criou todos os filhos assim e deixou para o mais velho, como herança, a
disposição para ganhar a vida.
O senhor não
percebeu, mas na penúltima fileira havia um garoto cheirando cola, o cheiro
podia ser sentido por todo o coletivo, mas o garotinho era quase invisível e o
senhor acreditou que o cheiro vinha pela janela, já que naquela região a
delinqüência era muito grande.
A senhora
evangélica, que subiu logo atrás do senhor, percebeu o moleque quando andava
pelo corredor do ônibus procurando um local para sentar e, ao avistá-lo, freou
o passo e procurou um local pelo meio do ônibus onde poderia ficar segura. Era
evangélica e acreditava que todos os males do mundo provinham da falta de Jesus
na vida das pessoas. Ficou tentada a levantar e ir ler um Salmo para o “cheira-cola”,
mas teve medo. Abriu um saco de pipoca e esqueceu do mundo. O cheiro de cola
misturado com o cheiro da pipoca causaria um enjôo, guardando, em breve, a
pipoca na bolsa para comer mais tarde.
O menino
continuava lá atrás, quietinho, cheirando sua cola e olhando a janela vendo o
nada. Seus bracinhos, seguravam a garrafinha com cola de forma maestral e, vez
ou outra, ele dava uns relances de mudar o rosto de posição, ajeitar-se na
cadeira e fitar as pessoas que entravam no ônibus.
A terceira
pessoa a entrar foi uma garota com um fone no ouvido. Cabelo preso, calça
jeans, camisa regata e óculos escuro. Sentou na última cadeira do coletivo, mas
logo se arrependeria. Percebeu o menino
do lado oposto ao seu cheirando cola. Não teve medo, mas teve raiva. Queria
matar todos os marginais de rua e inclusive aquele garoto. Se tivesse uma arma
ali mandaria aquele garoto descer na base da pancada, e ai dele se não
descesse. Aumentou um pouco o volume da música que ouvia e logo ficou enjoada
com aquele cheiro, mas já seria tarde para mudar de lugar, pois o ônibus logo
estaria cheio. Seu enjôo, descobriria mais tarde, também tinha a ver com sua
gravidez ainda desconhecida.
O garoto não
se incomodou com a menina, não a fitou. Olhava pela janela enquanto ela
passava. Seus olhinhos vazios não pensavam e seu ser não sentia nada. Cheirava
apenas, consumindo sua existência naquela garrafa.
A quarta
pessoa que subiu foi um rapaz de 28 anos. O homem vinha procurando emprego e
seu semblante refletia uma agonia infinita. Estava desesperado para ter, por
fim, orgulho de si. Jamais tentaria suicídio, adorava muito viver e queria
mostrar do que era capaz. Não tinha muito estudo, mas tinha muita determinação.
A sua pele preta e seu cabelo enrolado eram sua identidade. Assim que passou
pela catraca percebeu o marginal, e teve medo de ser roubado. O garotinho preto
parecia bastante ameaçador. Sentou na primeira fila para não correr perigo de
ser perturbado, e desejou imensamente que quando fosse descer aquele pivete não
mais estivesse no ônibus.
O motorista
parou em dezenas de paradas e em cada uma subia mais gente, até que chegou um
momento que não subia mais ninguém, apenas iam descendo, aos poucos, os
passageiros até o ônibus chegar ao seu destino.
O ônibus foi
ficando lotado de uma hora para outra, e aquele cheiro de cola intrigava os
passageiros da frente e intimidava os que sentaram atrás. A poltrona ao lado do
garoto foi a última a ser ocupada. Um jovem desatento, com bolsa e farda, foi o
último a sentar e não viu quem estava sentado ao lado. Só percebeu quando o cheiro
de cola entrou por suas narinas e foi então que viu aquela figura grotesca
alimentando suas narinas com aquele odor fétido. Se tivesse visto jamais
sentaria ali, teve medo de perder seu relógio e de sujar a farda.
Na poltrona de
trás do “cheira cola”, sentou uma mulher com um bebê de colo que esbanjava
sorriso e distribuía beijos para a mãe. A criancinha, miúda como uma
formiguinha, não falava, não tinha dentes e não percebia nada ao seu redor que
não fosse cor e som. Não teve medo, não teve raiva, apenas sorria. A mãe, um
pouco preocupada, tentou mudar de lugar, mas desistiu quando o motorista deu
partida e o risco de cair com o bebê era muito grande. Os passageiros que foram
em pé, olhavam a criança e ficavam encantados; os da lateral da mãe deram duas
ou três olhadas e resmungavam do cheiro insuportável de cola.
O
marginalzinho olhou o bebê nos olhos, mas seu olhar não tinha força de expressão,
era um olhar triste e caído de quem tinha sono, muito sono. Não sabemos o que
pensou aquele delinqüente, só sabemos que ele olhou fixamente e depois cheirou
mais uma vez o tubo de cola.
As pessoas
viam o garoto e depois não queriam mais vê-lo: era feio, cheirava cola, fedia e
tinha piolhos. O homem mais alto do coletivo pensou em sentar no lugar do
marginal, mas teve medo da reação das pessoas, já que ninguém reclamava e a
viagem seguia.Pensou que todos estavam tolerantes com aquela cena grotesca. A
viagem seguiu num silêncio sepulcral: os da frente intrigados com o cheiro da
cola, os de trás com medo, ódio e revolta. O silêncio maior era do garoto, que
não percebeu o ônibus encher de gente, nem percebeu o ódio no olhar das
pessoas.
A sinfonia da
viagem era o barulho do motor, as buzinadas da rua e os passos dos passageiros.
Um homem bem
vestido, sentado no meio do coletivo, olhava inquieto para os lados e para
frente. Parecia não conhecer o lugar e indagava para si onde deveria descer.
Não sabia e não perguntava. O pavor aumentou quando o ônibus encheu e ele não
sabia a quem perguntar.
O garoto
olhava para a rua, coçava o nariz e não exprimia mais reação. Não tinha medo,
não tinha calor, não pensava, não tinha sonhos. Estava ali, inerte no meio
daquelas pessoas importantes.
A viagem foi
longa, o cheiro de cola deixou muitos passageiros embriagados. Mas este era o
alimento do marginal, e ele estava compartilhando com os passageiros. Sim, ele
que não tinha nada, nem onde cair morto, compartilhou a sua única alimentação
do dia com todos os passageiros do coletivo. E cada um deles, trabalhadores ou
não, que comiam três vezes ao dia, que dormiam numa cama forrada de lençol e
podiam pagar a passagem do ônibus, não dividiam suas comidas com ninguém, mas
neste momento estavam ali, recebendo o néctar da criança.
O garoto, que
por instantes era notado, mas depois era invisível, se morresse ali ninguém
iria socorrer; se gritasse de dor ninguém se importaria, deixariam que este ser
tivesse o fim que merecia. E num ritual de completa solidão, o garoto que pegou
aquele coletivo por acaso, cheirava sua cola imberbe e perdido. Não tinha
forças, não tinha brilho, não tinha nada. Abriu um dos braços como que querendo
dormir encostado na janela – ninguém notou – se acomodou mais naquela cadeira e
deu uma tragada mais forte no tubo de cola.
Abaixou a cabeça,
fez o sinal da cruz e prosseguiu na sua viagem. Não tinha nome, não tinha
história, não tinha vida. Aquilo que ele era não tinha definição. O motorista
acelerou mais o ônibus, agora que saíra do engarrafamento podia recuperar o
tempo perdido. Limpou o suor da testa e ligou o rádio que tocava uma destas
músicas que exaltavam as belezas da vida.
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