Levanto e o sol começa a aparecer. Para meus amigos eu levanto na quase madrugada. Eu, com 40 anos e dois filhos, nunca pensei que nesta idade teria mais um filho. Cansativo, muito. Ando quase moribundo pelo corredor até chegar no seu quarto e ver que já está acordado. Deitado na cama, imóvel, sem choro e sem dizer uma palavra, fica olhando o teto, surpreso com o show de cores do nascer do dia. Dou o bom dia, ele me olha, não sorri, nem pede nada, apenas olha. Vou para a cozinha preparar a papa da manhã. Dois filhos fazem você ficar craque em papa e fraldas. Mas neste jogo pensei que estava aposentado.
Papa pronta e fria, como gostava. Levo-a até o quarto para dar em sua boca. Primeiro o prato sobre a mesa, depois trago-o ao colo, coloco a fronha sobre o ombro e encosto sua cabeça carequinha sobre mim. Cada colher em sua boca era uma aventura para ambos. Enquanto o alimento, lembro de toda a minha vida. Toda não, mas alguns fatos marcantes até aquele dia. Minha vida não se resume aos afazeres domésticos. Minha vida.
Terminou a papa em meia hora. Depois disso coloco-o sobre a cama, levo o prato até a cozinha e volto para cuidar de sua higiene. Carrego aquele ser frágil, sem dentes e sem forças até a banheira. Falo algumas palavras para ele incompreensíveis, e que são respondidas com o olhar. Tiro sua fralda suja, tiro sua camisa e coloco aquele corpo magro e pequeno dentro da banheira. Com as mãos vou jogando água em sua cabecinha, em seu rosto e por todo o corpo. Aquele corpo, até então inerte, demonstra a alegria interna de ficar, enfim, limpo. Sabão infantil com cheiro doce, shampoo infantil e um olhar ainda mais infantil. Tenho medo de deixar aquele ser frágil se afogar e aperto com mais força seu braço. Enxugo-o lentamente, como num ritual de purificação.
Deitado na cama passo pomada contra assaduras em seus genitais, coloco uma fraldo nova, visto-o como um lorde. Agora está limpo. Ligo a televisão para distraí-lo enquanto vou enfim cuidar de mim. Penso em tudo que ainda poderia fazer e lembro que falta o suco das 9 da manhã para fazer. Mas sosseguei um pouco e fui cuidar de mim, enfim.
Preparo meu café sozinho. Sem ninguém para conversar ou relatar os acontecimentos dos jornais falo com minha mente. Ligo a televisão da sala, sento na mesa e começo a comer o meu café da manhã.
Pobre do meu pai, um homem que foi tão ativo em sua vida inteira e agora encontra-se reduzido a um ser insignificante, dependente de mim para tudo. Sem mulher, com um filho, sem amigos, sem seu dinheiro e sem sua vida.
Enquanto como, tento imaginar como ele cuidou de mim. Na certa não cuidou. Em sua época as mulheres cuidavam da casa e nós homens cuidavam de trazer a comida. Mas certamente, alguma vez na vida ele deu banho em meu corpo pequenino, deu comida em minha boca e trocou minhas fraldas. Em algum momento, não é possível.
Eu estava casado, tinha filhos já garotos quando recebi a notícia de que meu pai estava com demência senil. Não tive reação, não sabia o que aquilo significaria. Enquanto o médico tentava explicar o que fazer, como cuidar, minha mente ia longe, voltava à minha infância e rememorava a nossa vida. Eu criança e ele, eu adolescente e ele, eu homem e ele. Agora teríamos essa página inesperada em nossas vidas. O homem nunca está preparado para o seu futuro.
Após um longo período fora, volto ao consultório e escuto o médico falando que hoje temos bons abrigos especializados em casos como este. Ele não vai para abrigo, eu vou cuidar dele. O médico silenciou, olhou nos meus olhos e sentiu que a nossa conversa poderia encerrar. Passou recomendações e saí daquela sala com o peso do mundo em minhas costas. Como explicar isso?
Tive um longo debate com minha esposa e filhos e decidi sair de casa. Eles estavam criados, tinham seu futuro certo. Agora precisava cuidar dele. Minha esposa esbravejava, achava que eu tinha enlouquecido, onde já se viu largar família e filhos ainda menores para cuidar de um velho quase morto. Após essa palavra, levantei-me e fui ao quarto buscar minhas roupas e meus objetos. Atrás de mim ela gritava, mas eu não a escutava. Apenas estava preocupado. Eu sei que atitudes como essa são radicais, mas eu precisava fazer aquilo. Seria meu primeiro ato de amor em sã consciência por aquele homem. Uma pena que ele jamais poderá reconhecer isso, mas eu precisava fazer, precisava cuidar dele por mim. Pedi licença do trabalho, afastei-me dos amigos e tranquei-me naquele apartamento.
Sentado sobre a mesa, assistia ao jornal da manhã com a tranquilidade de um ser imortal. Eu não pensava em nada, apenas assistia. No quarto, o ser inconsciente de si mesmo assistia ao mesmo jornal e respirava o mesmo ar que eu. Mas ele, aquele homem moribundo, não tinha ninguém por ele.
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