quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Cola



Eram 16:30, o sol já perdia sua força na cidade do Recife e as pessoas começavam a recolher-se para suas casas após um dia inteiro de trabalho. O ônibus parado em frente à praça do Diário tinha poucas pessoas, mas, em breve, estaria cheio. Subiram quatro pessoas nesta parada e o motorista deu, por fim, a partida. Subiu um senhor de 60 anos com uma sacola imensa nos braços, na certa era ambulante. Carrega nas costas o peso de seu trabalho e no rosto o peso de sua idade. Começou cedo a trabalhar. O pai, que era comerciante do Recife em tempos áureos, criou todos os filhos assim e deixou para o mais velho, como herança, a disposição para ganhar a vida.

O senhor não percebeu, mas na penúltima fileira havia um garoto cheirando cola, o cheiro podia ser sentido por todo o coletivo, mas o garotinho era quase invisível e o senhor acreditou que o cheiro vinha pela janela, já que naquela região a delinqüência era muito grande.

A senhora evangélica, que subiu logo atrás do senhor, percebeu o moleque quando andava pelo corredor do ônibus procurando um local para sentar e, ao avistá-lo, freou o passo e procurou um local pelo meio do ônibus onde poderia ficar segura. Era evangélica e acreditava que todos os males do mundo provinham da falta de Jesus na vida das pessoas. Ficou tentada a levantar e ir ler um Salmo para o “cheira-cola”, mas teve medo. Abriu um saco de pipoca e esqueceu do mundo. O cheiro de cola misturado com o cheiro da pipoca causaria um enjôo, guardando, em breve, a pipoca na bolsa para comer mais tarde.

O menino continuava lá atrás, quietinho, cheirando sua cola e olhando a janela vendo o nada. Seus bracinhos, seguravam a garrafinha com cola de forma maestral e, vez ou outra, ele dava uns relances de mudar o rosto de posição, ajeitar-se na cadeira e fitar as pessoas que entravam no ônibus.

A terceira pessoa a entrar foi uma garota com um fone no ouvido. Cabelo preso, calça jeans, camisa regata e óculos escuro. Sentou na última cadeira do coletivo, mas logo se arrependeria.  Percebeu o menino do lado oposto ao seu cheirando cola. Não teve medo, mas teve raiva. Queria matar todos os marginais de rua e inclusive aquele garoto. Se tivesse uma arma ali mandaria aquele garoto descer na base da pancada, e ai dele se não descesse. Aumentou um pouco o volume da música que ouvia e logo ficou enjoada com aquele cheiro, mas já seria tarde para mudar de lugar, pois o ônibus logo estaria cheio. Seu enjôo, descobriria mais tarde, também tinha a ver com sua gravidez ainda desconhecida.

O garoto não se incomodou com a menina, não a fitou. Olhava pela janela enquanto ela passava. Seus olhinhos vazios não pensavam e seu ser não sentia nada. Cheirava apenas, consumindo sua existência naquela garrafa.

A quarta pessoa que subiu foi um rapaz de 28 anos. O homem vinha procurando emprego e seu semblante refletia uma agonia infinita. Estava desesperado para ter, por fim, orgulho de si. Jamais tentaria suicídio, adorava muito viver e queria mostrar do que era capaz. Não tinha muito estudo, mas tinha muita determinação. A sua pele preta e seu cabelo enrolado eram sua identidade. Assim que passou pela catraca percebeu o marginal, e teve medo de ser roubado. O garotinho preto parecia bastante ameaçador. Sentou na primeira fila para não correr perigo de ser perturbado, e desejou imensamente que quando fosse descer aquele pivete não mais estivesse no ônibus.
O motorista parou em dezenas de paradas e em cada uma subia mais gente, até que chegou um momento que não subia mais ninguém, apenas iam descendo, aos poucos, os passageiros até o ônibus chegar ao seu destino.

O ônibus foi ficando lotado de uma hora para outra, e aquele cheiro de cola intrigava os passageiros da frente e intimidava os que sentaram atrás. A poltrona ao lado do garoto foi a última a ser ocupada. Um jovem desatento, com bolsa e farda, foi o último a sentar e não viu quem estava sentado ao lado. Só percebeu quando o cheiro de cola entrou por suas narinas e foi então que viu aquela figura grotesca alimentando suas narinas com aquele odor fétido. Se tivesse visto jamais sentaria ali, teve medo de perder seu relógio e de sujar a farda.

Na poltrona de trás do “cheira cola”, sentou uma mulher com um bebê de colo que esbanjava sorriso e distribuía beijos para a mãe. A criancinha, miúda como uma formiguinha, não falava, não tinha dentes e não percebia nada ao seu redor que não fosse cor e som. Não teve medo, não teve raiva, apenas sorria. A mãe, um pouco preocupada, tentou mudar de lugar, mas desistiu quando o motorista deu partida e o risco de cair com o bebê era muito grande. Os passageiros que foram em pé, olhavam a criança e ficavam encantados; os da lateral da mãe deram duas ou três olhadas e resmungavam do cheiro insuportável de cola.

O marginalzinho olhou o bebê nos olhos, mas seu olhar não tinha força de expressão, era um olhar triste e caído de quem tinha sono, muito sono. Não sabemos o que pensou aquele delinqüente, só sabemos que ele olhou fixamente e depois cheirou mais uma vez o tubo de cola.

As pessoas viam o garoto e depois não queriam mais vê-lo: era feio, cheirava cola, fedia e tinha piolhos. O homem mais alto do coletivo pensou em sentar no lugar do marginal, mas teve medo da reação das pessoas, já que ninguém reclamava e a viagem seguia.Pensou que todos estavam tolerantes com aquela cena grotesca. A viagem seguiu num silêncio sepulcral: os da frente intrigados com o cheiro da cola, os de trás com medo, ódio e revolta. O silêncio maior era do garoto, que não percebeu o ônibus encher de gente, nem percebeu o ódio no olhar das pessoas.

A sinfonia da viagem era o barulho do motor, as buzinadas da rua e os passos dos passageiros.

Um homem bem vestido, sentado no meio do coletivo, olhava inquieto para os lados e para frente. Parecia não conhecer o lugar e indagava para si onde deveria descer. Não sabia e não perguntava. O pavor aumentou quando o ônibus encheu e ele não sabia a quem perguntar.

O garoto olhava para a rua, coçava o nariz e não exprimia mais reação. Não tinha medo, não tinha calor, não pensava, não tinha sonhos. Estava ali, inerte no meio daquelas pessoas importantes.

A viagem foi longa, o cheiro de cola deixou muitos passageiros embriagados. Mas este era o alimento do marginal, e ele estava compartilhando com os passageiros. Sim, ele que não tinha nada, nem onde cair morto, compartilhou a sua única alimentação do dia com todos os passageiros do coletivo. E cada um deles, trabalhadores ou não, que comiam três vezes ao dia, que dormiam numa cama forrada de lençol e podiam pagar a passagem do ônibus, não dividiam suas comidas com ninguém, mas neste momento estavam ali, recebendo o néctar da criança.

O garoto, que por instantes era notado, mas depois era invisível, se morresse ali ninguém iria socorrer; se gritasse de dor ninguém se importaria, deixariam que este ser tivesse o fim que merecia. E num ritual de completa solidão, o garoto que pegou aquele coletivo por acaso, cheirava sua cola imberbe e perdido. Não tinha forças, não tinha brilho, não tinha nada. Abriu um dos braços como que querendo dormir encostado na janela – ninguém notou – se acomodou mais naquela cadeira e deu uma tragada mais forte no tubo de cola.

Abaixou a cabeça, fez o sinal da cruz e prosseguiu na sua viagem. Não tinha nome, não tinha história, não tinha vida. Aquilo que ele era não tinha definição. O motorista acelerou mais o ônibus, agora que saíra do engarrafamento podia recuperar o tempo perdido. Limpou o suor da testa e ligou o rádio que tocava uma destas músicas que exaltavam as belezas da vida.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Rapidinha.



E quando você encontra, ou reencontra outros escritores que trabalham produzindo artes poéticas para ninguém, ou quase ninguém, você se pergunta se é um encontro de poesias inacabadas ou poetas inacabados. A dúvida e o “ou” constante são apenas o mínimo reflexo da confusão que paira na mente deste ser que respira um verso, mas quase sempre cospe vogais soltas e num encontro desses, com velhos parceiros, simplesmente quer cuspir tudo o que digeriu do papo poético que teve.
A escrita perpassa não só pelo trabalho árduo de você conseguir colocar no papel o que sente, é também, ser capaz de transmitir para outros o que você pensa e aprender o que eles pensam. Sentamos num bar, conversamos pouco, os dias corridos roubam tempos de prazer e as palavras que gostaríamos de ter tempo de escrever: as palavras saem, mas surgem fatigadas pelo dia longo de cansaço.
Amizades não morrem, esfriam e basta uma chama que reacende. Nosso tempo de vida exige o ontem, pois para chegarmos no dia de amanhã devemos nos antecipar e termos “know how”. Já no tempo dos amigos, vivemos o ontem, pois o amanhã pode não chegar e precisamos dizer tudo que temos para dizer naquele curto espaço de tempo a que chamam de lazer.
E o tempo passou rápido, e como passou rápido, mal nos cumprimentamos na chegada com abraços e sorrisos, e já nos despedíamos prometendo um até logo, mas o até logo não tem um dimensão concreta e pode levar outros longos anos...