A velha segurava com força o corrimão da escada. De certo que sua força
não era como antes, mas ela ainda continuava forte. Sua vida foi reduzida a
quase incapacidade de viver depois de tanto tempo e tantas doenças, mas mesmo
assim ela era capaz de encarar seus desafios e superá-los. Agora tinha mais um,
descer estas escadas.
Quando menina descia esta mesma escada num pulo só, pegava impulsão e
jogava seu corpo para frente. Não se machucava, não se feria, apenas tombava e
o tombo a deixava feliz. Limpava a roupa e saia correndo para brincar com seus
amigos na rua. Naquele tempo não era capaz de olhar para o futuro e se imaginar
velha, mas hoje ela é capaz de olhar para o passado e para o futuro e saber
exatamente o que aconteceu e o que vai acontecer. A vida passou como um filme,
e quem a ver hoje não é capaz de imaginar que já foi bonita, simpática,
guerreira, inteligente e que teve vários homens em sua vida. Quem olha para a
velha tem pena, tem carinho, mas é capaz de entender a sua vida.
Desceu o primeiro degrau. Este foi fácil, as pernas embora lentas e
pesadas respondem bem ao primeiro comando. A força no braço é o segredo, segure
com força o corrimão, coloque a primeira perna e depois a segunda sem pressa,
tente não perder a força segurando o corrimão. Você pode até tropeçar, mas não
cairá se estiver firme no corrimão. Ela olhou para o fim da escada e percebeu
que tinha muito o que fazer ainda, outros degraus precisavam ser vencidos,
impulsionou o corpo para mais um degrau.
Na época em que descia com um pulo essas escadas, ela também conheceu
outra escada, mas esta venceu a criança. No dia do santo da cidade seus pais a
levaram para receber a bênção do padre e a fizeram subir aquela escadaria
enorme da igreja. Seus pulos não funcionariam, o sol a cansava só de olhar e
toda aquela multidão clamando aos céus e pedindo proteção a assustava
vertiginosamente. Na entrada da igreja seu pai e sua mãe ficaram de joelhos,
sem saber o porquê ficou também e os imitou naquele sinal de respeito. Todos os
anos ela fazia a mesma coisa, não sabia, mas a mania de ajoelhar e pedir
proteção na porta da igreja ela aprendeu com os pais, faz parte daquela
infinidade de movimentos que copiamos sem saber quando surgiu e de quem surgiu.
Venceu o segundo degrau. Respirou fundo e sentiu o vento que descia
daquelas escadas. Seu cabelo branco levantou-se, seu vestido balançou e seu
medo não apareceu. Todos os dias era a mesma coisa, descer aquela escada
sozinha, só ela e os degraus. Não tinha medo da morte, mesmo sabendo que uma queda
poderia ser fatal. Não tinha medo da cama, não tinha medo de nada.
Enfrentou mais um degrau, o terceiro. Lembrou que na sua festa de 15 anos
esta mesma escada foi a que enfrentou até chegar ao terraço lá em baixo. A casa
estava cheia de gente, todos alegres. Seu pai já estava bêbado e procurando
coragem para dançar a valsa. Ela olhou para aquela escada e teve medo. Não teve
medo de descê-la, mas de ver o que a esperava no fim dela. Sua prima segurou o
fim do vestido, ajudou-a a tomar coragem e perna por perna foi descendo aquele
mar de pedras. A cada descida seu coração palpitava mais forte e tinha a
sensação de que cairia a qualquer momento. Não caiu. Nunca caiu naquela escada.
Quando chegou ao fim e que viu a multidão, seus olhos encheram de lágrimas e
seu sorriso despontou no rosto. Foi recebida com abraços, uma salva de palmas e
gritos de viva!
Desceu mais um degrau, o quarto. Fez uma pausa e olhou para o fim da
escada. Estava próximo. Estava próximo o momento de descer tudo e finalmente
poder viver aquele seu dia, só subiria novamente para almoçar. Mas até lá já
estaria descansada. Respirou fundo, se equilibrou mais e desceu mais um degrau.
O quinto.
Lembrou de sua formatura, seria professora. Com o canudo nas mãos desceu
as escadarias do teatro que a separavam de seus pais. Naquele momento ela olhou
para as escadas e sabia que as venceria, já estava com o diploma, o mais que
viria seria vaidade. As lágrimas escorriam de seus olhos sem pausa, seu corpo
tremia mais que tudo e seu coração pulsava algum enredo de carnaval, porque sua
batida era frenética.
Abraçou seus pais e teve orgulho de si. Seu pai teve orgulho, sua mãe
teve orgulho e ela teve mais uma vez orgulho.
Desceu o sexto degrau. Dessa vez não precisou esperar muito. Do quinto
para o sexto aproveitou o embalo e simplesmente se deixou levar. Mas não
poderia fazer isso sempre, o grande perigo ainda não foi vencido.
Desceu o sétimo degrau. As escadarias da igreja mais uma vez seria seu
obstáculo. Vestida de noiva teve que subir alguns degraus. Vencer aquela tarefa
não seria fácil, o vestido pesava muito, tinha muitos babados. O sorriso não
deixava de sair de seu rosto e a ansiedade das pessoas dentro da igreja era
capaz de sentir ali fora. Com o buquê nas mãos foi vencendo degrau por degrau,
subir aquilo tinha sido a coisa mais difícil que tinha feito até então. Mas não
teve medo, teve uma incontrolável felicidade, tanta, que não percebeu que subiu
uma escada. Aquela visão, aquelas pessoas, aquele momento, tudo ficou em sua
memória, foi capaz de lembrar do cheiro da natureza daquele dia durante vários
anos.
Desceu o oitavo degrau. Nem sinal de um braço para ajudá-la, nem sinal de
pessoas no piso a aguardando. Aquela missão seria a sua missão. Mas também, se
alguém aparecesse naquele momento ela recusaria a ajuda. Desceu tudo aquilo
sozinha e agora não precisava de mais ninguém, poderia descer sozinha dos
degraus.
Neste momento as duas mãos estavam segurando o corrimão. Seu cansaço já
era grande, suas pernas estavam ainda mais lentas e aquele exercício a fatigara
imensamente. Mas estava próximo do fim.
No nono degrau não lembrou mais de nada e no décimo e último apenas
suspirou com o fim. Ficou quieta olhando o terraço e a grade que a separava da
rua.
Caminhou lentamente sem apoiar os braços em nada, não precisava mais.
Segurou a sua cadeira de balanço e arrastou um pouco, era pesada. Arrastou mais
um pouco e a deixou no lugar que gostava. Sentou-se. Estava ali, sentada no seu
terraço, ali onde cresceu e viveu a vida toda, ali onde teve alegrias e tristezas.
Agora era velha, não tinha muito o que dizer. Sentada, observava a vida na rua
passar, olhava para fora, olhava a vida que fervia ali, depois das grades. Seu
tempo é outro.