sábado, 12 de outubro de 2013

Devagar

De grão em grão a vida vai se construído
De pouco em pouco vamos vivendo
E neste passo devagar as coisas vão passando
E quando finalmente percebemos, não é a vida que vai devagar

É o nosso ritmo que é diferente.

sábado, 5 de outubro de 2013

ESCADAS


A velha segurava com força o corrimão da escada. De certo que sua força não era como antes, mas ela ainda continuava forte. Sua vida foi reduzida a quase incapacidade de viver depois de tanto tempo e tantas doenças, mas mesmo assim ela era capaz de encarar seus desafios e superá-los. Agora tinha mais um, descer estas escadas.
Quando menina descia esta mesma escada num pulo só, pegava impulsão e jogava seu corpo para frente. Não se machucava, não se feria, apenas tombava e o tombo a deixava feliz. Limpava a roupa e saia correndo para brincar com seus amigos na rua. Naquele tempo não era capaz de olhar para o futuro e se imaginar velha, mas hoje ela é capaz de olhar para o passado e para o futuro e saber exatamente o que aconteceu e o que vai acontecer. A vida passou como um filme, e quem a ver hoje não é capaz de imaginar que já foi bonita, simpática, guerreira, inteligente e que teve vários homens em sua vida. Quem olha para a velha tem pena, tem carinho, mas é capaz de entender a sua vida.
Desceu o primeiro degrau. Este foi fácil, as pernas embora lentas e pesadas respondem bem ao primeiro comando. A força no braço é o segredo, segure com força o corrimão, coloque a primeira perna e depois a segunda sem pressa, tente não perder a força segurando o corrimão. Você pode até tropeçar, mas não cairá se estiver firme no corrimão. Ela olhou para o fim da escada e percebeu que tinha muito o que fazer ainda, outros degraus precisavam ser vencidos, impulsionou o corpo para mais um degrau.
Na época em que descia com um pulo essas escadas, ela também conheceu outra escada, mas esta venceu a criança. No dia do santo da cidade seus pais a levaram para receber a bênção do padre e a fizeram subir aquela escadaria enorme da igreja. Seus pulos não funcionariam, o sol a cansava só de olhar e toda aquela multidão clamando aos céus e pedindo proteção a assustava vertiginosamente. Na entrada da igreja seu pai e sua mãe ficaram de joelhos, sem saber o porquê ficou também e os imitou naquele sinal de respeito. Todos os anos ela fazia a mesma coisa, não sabia, mas a mania de ajoelhar e pedir proteção na porta da igreja ela aprendeu com os pais, faz parte daquela infinidade de movimentos que copiamos sem saber quando surgiu e de quem surgiu.
Venceu o segundo degrau. Respirou fundo e sentiu o vento que descia daquelas escadas. Seu cabelo branco levantou-se, seu vestido balançou e seu medo não apareceu. Todos os dias era a mesma coisa, descer aquela escada sozinha, só ela e os degraus. Não tinha medo da morte, mesmo sabendo que uma queda poderia ser fatal. Não tinha medo da cama, não tinha medo de nada.
Enfrentou mais um degrau, o terceiro. Lembrou que na sua festa de 15 anos esta mesma escada foi a que enfrentou até chegar ao terraço lá em baixo. A casa estava cheia de gente, todos alegres. Seu pai já estava bêbado e procurando coragem para dançar a valsa. Ela olhou para aquela escada e teve medo. Não teve medo de descê-la, mas de ver o que a esperava no fim dela. Sua prima segurou o fim do vestido, ajudou-a a tomar coragem e perna por perna foi descendo aquele mar de pedras. A cada descida seu coração palpitava mais forte e tinha a sensação de que cairia a qualquer momento. Não caiu. Nunca caiu naquela escada. Quando chegou ao fim e que viu a multidão, seus olhos encheram de lágrimas e seu sorriso despontou no rosto. Foi recebida com abraços, uma salva de palmas e gritos de viva!
Desceu mais um degrau, o quarto. Fez uma pausa e olhou para o fim da escada. Estava próximo. Estava próximo o momento de descer tudo e finalmente poder viver aquele seu dia, só subiria novamente para almoçar. Mas até lá já estaria descansada. Respirou fundo, se equilibrou mais e desceu mais um degrau. O quinto.
Lembrou de sua formatura, seria professora. Com o canudo nas mãos desceu as escadarias do teatro que a separavam de seus pais. Naquele momento ela olhou para as escadas e sabia que as venceria, já estava com o diploma, o mais que viria seria vaidade. As lágrimas escorriam de seus olhos sem pausa, seu corpo tremia mais que tudo e seu coração pulsava algum enredo de carnaval, porque sua batida era frenética.
Abraçou seus pais e teve orgulho de si. Seu pai teve orgulho, sua mãe teve orgulho e ela teve mais uma vez orgulho.
Desceu o sexto degrau. Dessa vez não precisou esperar muito. Do quinto para o sexto aproveitou o embalo e simplesmente se deixou levar. Mas não poderia fazer isso sempre, o grande perigo ainda não foi vencido.
Desceu o sétimo degrau. As escadarias da igreja mais uma vez seria seu obstáculo. Vestida de noiva teve que subir alguns degraus. Vencer aquela tarefa não seria fácil, o vestido pesava muito, tinha muitos babados. O sorriso não deixava de sair de seu rosto e a ansiedade das pessoas dentro da igreja era capaz de sentir ali fora. Com o buquê nas mãos foi vencendo degrau por degrau, subir aquilo tinha sido a coisa mais difícil que tinha feito até então. Mas não teve medo, teve uma incontrolável felicidade, tanta, que não percebeu que subiu uma escada. Aquela visão, aquelas pessoas, aquele momento, tudo ficou em sua memória, foi capaz de lembrar do cheiro da natureza daquele dia durante vários anos.
Desceu o oitavo degrau. Nem sinal de um braço para ajudá-la, nem sinal de pessoas no piso a aguardando. Aquela missão seria a sua missão. Mas também, se alguém aparecesse naquele momento ela recusaria a ajuda. Desceu tudo aquilo sozinha e agora não precisava de mais ninguém, poderia descer sozinha dos degraus.
Neste momento as duas mãos estavam segurando o corrimão. Seu cansaço já era grande, suas pernas estavam ainda mais lentas e aquele exercício a fatigara imensamente. Mas estava próximo do fim.
No nono degrau não lembrou mais de nada e no décimo e último apenas suspirou com o fim. Ficou quieta olhando o terraço e a grade que a separava da rua.

Caminhou lentamente sem apoiar os braços em nada, não precisava mais. Segurou a sua cadeira de balanço e arrastou um pouco, era pesada. Arrastou mais um pouco e a deixou no lugar que gostava. Sentou-se. Estava ali, sentada no seu terraço, ali onde cresceu e viveu a vida toda, ali onde teve alegrias e tristezas. Agora era velha, não tinha muito o que dizer. Sentada, observava a vida na rua passar, olhava para fora, olhava a vida que fervia ali, depois das grades. Seu tempo é outro.